melody erlea
a passagem do tempo em gambito da rainha

muito foi e está sendo dito sobre a força do figurino da protagonista beth harmon, interpretada por anya taylor-joy, em o gambito da rainha, a mini-série mais popular do netflix até hoje. o figurino é impecável, evolui com a personagem, se conecta com o tabuleiro, as peças e as jogadas de xadrez, e é de uma beleza que só.
mas o que mais me chamou a atenção foi que o figurino tem uma função clara na narrativa, uma função prática, que é marcar a passagem do tempo. tanto no sentido geral, do tempo que se passa durante a história, dos conservadores e antiquados anos 50 aos revolucionários anos 60, mas também a passagem de tempo da protagonista, seu tempo pessoal, seu amadurecimento e seu esforço pra fazer parte de um mundo do qual ela parece ter nascido para viver às margens.
visualmente, as roupas como marcação de tempo são importantes na série: elas demonstram o ambiente conservador em que beth cresceu e as mudanças sociais conforme ela amadurece e ganha sua própria independência.

a mini série é baseada no romance homônimo, publicado em 1983, de walter tevis, que nos apresenta uma beth harmon com sutis mas importantes diferenças da que vemos na tv. a beth do livro é extremamente insegura, sofre de ansiedade e por isso fica rapidamente viciada nos tabletes tranqulizantes que o orfanato a faz tomar diariamente. eles a acalmam, fazem sumir o incômodo no estômago (ela descreve como um punho fechado dentro do estômago, ansioses irão se identificar com a sensação) e tira o gosto de vinagre que ela sempre parece ter na boca. a garota tem pouquíssimas habilidades sociais, falando sempre objetivamente e apenas o que é extritamente necessário dizer. ela é livre e feliz enquanto joga xadrez, e só.
uma das coisas que mais me marcou na jovem beth do livro é quão ciente ela está do seu uniforme do orfanato - uma saia cinza de pregas e um suéter que tem bordada a palavra Methuen, o nome da instituição. é a primeira coisa que ela nota quando é convidada a jogar xadrez numa escola pública de ensino médio, e, depois que é adotada, ela também se sente inadequada e exposta com aquele uniforme que tão claramente rotula quem ela é: órfã, sem graça.

ela ser sem graça, não-bonita, simples, sem sal é outro fator importante na história - algo que na série se perde porque o rosto de anya taylor-joy é qualquer coisa menos comum, pra não dizer que ela é estonteantemente linda.
na versão do netflix, beth harmon também me parece ser mais cheia de si do que na história original - suas frases curtas e secas soam como uma pessoa auto-confiante o suficiente pra não querer ou precisar trocar mais palavras do que necessário com as pessoas ao seu redor, que não a compreendem. na cena de seu primeiro campeonato de xadrez, ao qual ela vai sem saber as regras básicas de participação e sequer ter uma pontuação pra ser classificada, beth marcha até a mesa de inscrição e responde às perguntas dos rapazes sem dúvida na voz, como alguém que sabe que não precisa de pontuação ou classificação pra vencer de todos os participantes.
essa segurança de beth, que é na verdade uma máscara, uma parede cuidadosamente erguida para lidar com os traumas de sua infância, o relacionamento tóxico de seus pais, a morte dos dois e sua infância sem afeto no orfanato, se desenvolve conforme beth aprende e alcança excelência no xadrez. rapidamente o corte de cabelo genérico do orfanato, curto e reto, o uniforme padronizado, o visual que a faz parecer comum e "sem sal", não lhe serve mais.
esse é um ponto importante do figurino: ele é a ferramente que beth usa pra transparecer no exterior toda a segurança e independência que o uniforme e o corte com franjinha reta escondiam. há um ponto da história em que um jornalista e jogador de xadrez, townes, que cruza com beth em muitos momentos da história, diz, surpreso: você até ficou bonita!
beth harmon: frequenta o chelsea hotel e repete roupa
a cena existe no livro da mesma maneira, mas me parece que a intenção nas duas versões é completamente outra: na série beth sempre foi bonita, mas não estava atualizada em sua aparência (usava vestidos antiquados de liquidação) e ainda não "se cuidava" (o cabelo com o corte genérico e sem cuidados, o rosto sem maquiagem). lembrando aqui que a manutenção da beleza feminina parte, principalmente, de rituais diversos de modificação corporal - fazer as sobrancelhas, passar maquiagem, alisar o cabelo, pintar as unhas etc - que são aprendidos com o tempo e melhor postos em prática quando a mulher em questão tem mais poder aquisitivo, tempo ocioso - sem tarefas domésticas, filhos, trabalho - e acesso a produtos de maior qualidade. é uma simples questão de "crescer na vida" no modelo capitalista. não é algo que se desenvolve por meio de experiências pessoais que fazem o personagem evoluir. na série, a beleza de beth indica que ela está mais bem-sucedida, mais popular, mais rica e ainda mais segura de si (embora a segurança seja cada vez mais uma grande redoma de vidro disfarçando seus vícios e sua solidão).
no livro, o embelezamento de beth tem outra conotação: essa é uma mulher definitivamente sem graça. ela é descrita como sem graça muitas vezes, com seus cabelos castanhos comuns, sua pele pálida, seu nariz grande, seu corpo sem forma. é por causa dessa sem-gracice que ela demora pra ser adotada, enquanto vê meninas mais novas, mais fofas, mais loiras, com olhos mais azuis indo embora. é aí que sua amiga jolene faz um contraponto importante: enquanto beth vê meninas bonitas sendo adotadas, jolene vê meninas brancas. acredito que isso seja um lembrete: beth pode ser órfã, pobre e sem graça, mas ela ainda assim tem a grande vantagem de ser branca. é isso que a permite andar por ambientes masculinos e pouco a pouco ganhar respeito no xadrez. é isso que a permite, um dia, ser considerada bonita.
há também o elemento da passagem da adolescência para a vida adulta: a beth adolescente, insegura e sem graça, aos poucos dá espaço para a beth adulta, sofisticada e bem-sucedida, que depois de anos se sentindo desatualizada em suas roupas e aparência, finalmente pode exibir seu gosto, que agora está no mesmo nível de sua maturidade, de suas experiências e de sua sexualidade, que aflora conforme ela avança em seu reconhecimento no xadrez.

isso é muito bem traduzido na cena em que beth menstrua, em um dos primeiros campeonatos do qual participa. a metáfora é clara: é aqui que a protagonista deixa de ser uma criança e se torna uma mulher num meio que é majoritariamente masculino. no livro, é nesse momento, também, que temos uma maior compreensão da conexão de beth com sua amiga jolene, com quem deixa de ter contato após ser adotada. é de jolene que ela lembra ao sentir a cólica e ver as manchinhas de sangue em sua calcinha - foi jolene que ensinou pra ela sobre menstruar e o que fazer numa situação como essa: forrar a calcinha com uma camada generosa de papel higiênico.
jolene serve como uma bússola para harmon - o único exemplo de amizade feminina que ela tem, e o único exemplo de uma mulher que foge às regras do que se espera. nas primeiras semanas em sua nova escola, ela vê uma menina negra ao longe no corredor e tem certeza que é jolene. há também um momento em que ela visualiza a mulher que quer ser no futuro - bem vestida, moderna, descolada - e descreve essa versão dela mesma como "uma versão branca da jolene". e em mais de uma ocasião ela nota que, além de não haver mulheres nos espaços e eventos de xadrez, não há pessoas negras.
mas jolene não é a única mulher que guia as escolhas de harmon - é observando as meninas em sua nova escola que ela entende que roupas usar e onde comprá-las para estar de acordo com as tendências das garotas ricas e estilosas. e é com sua mãe adotiva que beth aprende a beber, e descobre que o álcool tem um efeito parecido com as pílulas que toma desde a infância, mas mais rápido, e sem deixar sua cabeça anuviada e pesada pela manhã.
a evolução de seu estilo pessoal acompanha a evolução de seus vícios: harmon se veste cada vez com mais segurança e elegância, e se adapta às tendências de moda da década de 60 sem grandes dificuldades. a aura boêmia e libertária dos anos 60 combinam com a beth solitária e bêbada que existe fora dos campeonatos de xadrez, ao mesmo tempo que marcam sua necessidade de parecer moderna, cool, exótica, atraente - o oposto da garota de aparência mediana e uniforme sisudo de orfanato. beth harmon é a edie sedgwick do xadrez: linda, popular, bem vestida, estilosa, e extremamente perturbada.


seus looks também refletem os lugares por onde passa. um dos meus preferidos é um vestido que ela usa quando está em paris, que a figurinista da série, gabriele binder, diz remeter à modernidade e elegância das criações de pierre cardin. a estampa moderna e a modelagem reta do vestido me parecem ser a representação total do que beth queria ser: alguém à frente de seu tempo, elegante na postura mas inovadora nas escolhas, uma mulher inesquecível.
durante sua estadia em nova york, seus looks se tornam mais despojados, denotando uma harmon mais livre, mais em sintonia com a efeverscência jovem e cultural da cidade nos anos 60. eu imagino ela cruzando com a patti smith e mandando beijinhos pro andy warhol, sendo aquela presença classuda e interessante no meio de um bando de artistas loucos.
por fim, beth ultrapassa todos os gostos engessados de suas colegas de escola, que ela descobre serem essencialmente entediantes quando é, finalmente, convidada para uma festa na casa de uma delas. com as ferramentas de moda e beleza, beth deixa marcado seu lugar no mundo do xadrez - e no mundo como um todo, já que rapidamente ela ganha fama internacional. embora ela siga tendências de silhueta das décadas onde a série se passa, a personagem passa a ter completo domínio do que veste, se tornando uma figura meio avant-garde, quase uma artista. o impacto de ser a única mulher na maioria dos ambiente que frequenta também contribui pra essa aura artística, exótica, hipnotizante.

o figurino também reflete a conexão que beth tem com o jogo de xadrez, ferramenta essencial do seu empoderamento ao longo da série - há uma variedade de estampas em xadrez, que remetem ao tabuleiro do jogo, desde o primeiro vestido que beth compra sozinha, com dinheiro que ganhou em seu primeiro torneio, e que ela combina com os sapatos oxford em preto e branco, similares ao modelo usado pelas garotas populares de sua escola. essa roupa marca o início da jornada de beth em busca de se encontrar no mundo e em si mesma: o vestido xadrez, que representa a importância do jogo naquele momento de sua vida, e os sapatos p&b, que representam a tentativa de ser mais atraente e fashionista.
desse momento para o fim, assistimos os altos e baixos de beth, seus vícios em bebida e tranquilizantes, sua relação doentia e apaixonada com o xadrez, até que, no fim, a vemos gloriosa, confiante, caminhando num look all white dos pés à cabeça, que remete à rainha branca do tabuleiro de xadrez. a rainha do tabuleiro, após passar por todas as tensões da partida de xadrez, de pé, vitoriosa, respeitada e inesquecível.

só que, no caso, a partida de xadrez é a vida, o tabuleiro é o mundo, e beth é a rainha conquistadora de sua própria história.