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  • Foto do escritorFilipe Chamy

As mínimas grandezas de Norman McLaren

Comecemos estabelecendo um pequeno postulado: nada mais minimalista que a arte da animação – entendida como os antigos (da Antiguidade) entendiam “animação”, ou seja, um princípio mecânico; daí anima, a alma que movimenta o que sem ela seria inanimado.


Um novo conceito em gola tartaruga: touché!

Quantos de nós desconhecemos os pavorosos desenhos curtos de humor de Hanna Barbera, em que congelavam num pescoço duro (inexistente, invisível) uma indefectível, onipresente e sem vergonhíssima gravatinha para deixar o corpo uniforme, estático, enquanto a única coisa a se movimentar era o rosto da personagem, que se abria e fechava esquisitamente, dando uma torta impressão de vida? Eram os famosos “desenhos desanimados”.



O caso dos Catataus e Dum Duns se explica evidentemente pela preguiça e pela padronização de desenhos que não apenas criava uma identidade para o estúdio como estabelecia rotas comerciais seguras para a massificação das personagens visando ao licenciamento em produtos. Economia de recursos, facilitação de reprodução, equipe pequena, custos mais que compensadores. Funcionou por décadas e esses desenhos mal animados ainda são populares, seu legado sendo continuamente renovado. Não deixa de ser uma aula de minimalismo.


Sereia sem alma: a Ariel de Glen Keane (© Disney)

Mas o minimalismo da animação é ontologicamente outro, quando tratamos de obras que lidam com expressão menos financeiramente apurável. Animação, afinal, é comunicar visualmente uma ideia num ambiente que, antes de qualquer coisa ser viabilizada, é essencialmente o bom, velho e intimidador papel em branco, algoz da virtual maioria dos artistas hoje, antes e sempre!




Portanto, animação é, como algumas outras artes também, macular a brancura de um papel com traços, rabiscos e linhas que não estavam lá originalmente. Criar tudo, pois não há nada num papel originariamente: não há cenários, nem pessoas, objetos, cores. O desafio-mor é desenvolver as ideias com clareza e foco, e por isso o minimalismo: menos é mais, e a eficácia se reporta a algumas condições específicas, tais como não poluir demasiadamente a tela, desenhar apenas o que deve ser desenhado.


"A viagem de Chihiro" ou a ideia de um ambiente 'clean' por Hayao Miyazaki

"Só mais um pontinho..." (Jack Long/NFB)

Minimalismo em animação é um princípio de expressividade. Não é o feng shui que ordena o que deve haver num quadro animado, e sim a comunicação artística. Viabilizar uma visão conceitual, que levará a determinados efeitos. Com muita informação, não podemos compreender o que se passa, exceto se justamente essa confusão for o recurso procurado (como em certos filmes, magistrais e pouco minimalistas, de Hayao Miyazaki). Cada elemento num filme animado deve ser criteriosamente montado.


Quando eu penso nesse princípio, instantaneamente me vem à mente um cineasta primoroso que, de modo geral, não lida com animação narrativa: Norman McLaren. Esse engenhoso experimentalista canadense extrapola as barreiras do minimalismo ao fazer filmes brevíssimos em que investiga as utilizações dos atributos mínimos de sua arte, como o movimento, a disposição dos objetos em cena e até o suporte em que sua obra é construída (desenhando diretamente na película, por exemplo).


"Independência ou morte", de Pedro Américo, pintor maximalista

Quanto menos se dispõe numa tela, mais cada peça da tapeçaria se faz relevante: aquilo deve ser observado com atenção, não está à toa e nem gratuitamente. Num quadro gigantesco de Pedro Américo talvez percamos de vista a disposição da fivela do sapato de um dos nobres representados, mas se há apenas uma linha num filme de Norman McLaren, e essa linha se duplica, e o som acompanha as sinuosidades aritmético-geométrico-visuais da inquieta linha, acompanharemos com interesse e sofreguidão cada pulsar daquele serpear.


Poema de E. M. de Melo e Castro (Horas Mortas)

Em Synchromy, eterna presença nas minhas listas de filmes favoritos, filme realizado por McLaren em 1971, estaremos diante de pequeno portento ótico-auditivo, ao testemunharmos, centralizada na imagem, uma faixa vertical, dividida em algumas instâncias, com determinado som. Esse som se fragmenta em vários pedaços de tamanhos diferentes, que se alternam, crescem, ampliam, diminuem, espalham. A cada alteração na faixa, e consequentes multiplicação, fracionamento e transmutação cromática, temos igualmente um balé de matizes, gravidades, perspectivas. O quadro é sempre geometrizado, rigoroso: não há especial aleatoriedade nas escolhas de som e visual, antes uma obsessiva, limpíssima simetria. “Sincromia”. Simultaneidades de cor, luz, áudio. Vemos, ouvimos. O ambiente permanece limpo, rígido. O mais delicioso expressivo minimalismo.



Lines horizontal e Lines vertical são curtas-irmãos, feitos no início dos anos 1960 em colaboração com Evelyn Lambart, experimentos (ou, como dito nos filmes, estudos) gêmeos dedicados a sondagens parecidas, em sentidos diferentes (trocadilho pretendido, sim, senhor!). As linhas seguem determinados movimentos a que sua ética não permite escapar. A depender da posição em que se encontrem no quadro, haverá inescapáveis cruzamentos e, Deus as abençoe, crescerão e multiplicar-se-ão. Quando verticais parecem criar portões, grades, assemelham entortar-se e vergarem para construir materialmente o que essencialmente é abstração, linhas constitutivas, primordiais, mínimas unidades para estabelecer uma forma.



Quando horizontais, pensaremos em lápis rolando, ilusão de cilindros a comprimirem espaços, construindo sentidos, quem sabe canos. As linhas se entrechocam e esbarram, parecem curvar-se umas sobre outras, apesar de rigidamente paralelas. É a ilusão programática da proximidade, recuo, distanciamento, supressão, velocidade que cria tantos significados. Cinco minutos de linhas de Norman McLaren equivalem ao conteudismo de mil filmes maximizados, comprimidos.



Numa de suas incursões à bizarra metafísica metalinguística da própria película, eis Dots, McLaren primevo, de 1940, em que, desenhados diretamente no filme, pontos surgem, ressurgem e desaparecem em brevíssimo pedaço de tempo. Podem ser lisos, uniformes, encristados, amorfos como manchas. Se estão aqui, farão um som e ficarão por determinado período; acolá, será o dobro ou a metade desse tempo, e poderão ainda juntar-se a outros colegas de tinta e enfileirar-se, perfilar uma estranha dança sinfônica que criará dois minutos de intenso hipnotismo.



E já que falamos em dança, entremos no baile: Pas de deux (1968), conhecido movimento de balé, um dos belos ensaios de Norman McLaren acerca de dança e corpo humano. Nem só de tinta vive um animador! Primeiramente testemunharemos um quadro totalmente preto, com uma bailarina em branco ao fundo. Como dito, há que se reparar profundamente no pouco que aparece criado em um filme assim, evidentemente o foco a que devemos nos ater. E a dançarina será duplicada, dançando consigo mesma, até o surgimento de seu parceiro masculino para o passo de dois. E o casal performará, pulverizado em infindáveis multiplicações, ao largo e em roda, danças que desnaturarão os movimentos, arquitetando intersecções de formas, brancas, contínuas, caleidoscópicas, que preencherão o fundo negro com movimentações delicadas, deslocamentos revezados de peso, leveza e cadência, completando num encontro final o mosaico estrutural modelado com apenas um par de vulto claro destacado no breu.



Mosaic é precisamente o título de outro filme do final dos anos sessenta, assinado por McLaren e Lambart. O próprio cineasta aparece, como as figuras do curta referido acima, recortado no negrume absoluto que força nosso olhar para o único ponto ocupado na tela – e lá está o querido Norman apresentando um ponto. Não argumentantivo, mas visual: ele literalmente mostra um ponto e sai de cena, borrando a divisão entre ação real e animação. Quem é personagem, onde é representação, quando é ficção? Norman McLaren e um ponto, parelha digna, dupla insuspeita que mostrará o ponto se quadruplicando, explodindo, juntando, espirrando e se reunindo aos pedaços para compor os cúbicos mosaicos que dão nome ao experimento. Nada mais: fundo chapado, quase sempre escuro, pontos que não mudam de forma exceto uniformemente (novo trocadilho deliberado), previsibilidade de movimentos, ordenação rítmica. A magia, se podemos chamar de mágica a beleza organizada de um concerto de parâmetros geométricos, se faz pela funcionalidade ocupacional das medidas aparentes do mosaico, e não é pouco: é mínimo.



Encerramos este breve expositório com Rythmetic, um curto filme da mesma dupla acima realizado em 1956. Quase um poema concreto, pois no peito dos animadores também bate um coração. Como E. M. de Melo e Castro comprovou, ainda que os gregos já o soubessem desde Euclides, a matemática faz sentido também posicional. Os números fazem suas operações entendendo serem parte de estruturas que possuem ritmo específico; aqui, uma percussão aproximada da rumba, fechando um losango em que a aritmética possui o primado da regência. Um fundo todo azul, números simples, sinais um pouco rebeldes que todavia se prestarão a demonstrar pequenas contas simétricas (é a simetria indissociável do minimalismo?), onde o ator de maior vulto é o algarismo arábico 8.



Mal animado, porém politizado: saída pela esquerda...

A carreira de Norman McLaren perdurou por décadas de inventividade e imaginação. Para este texto ficar no mínimo, os curtas acima dão boa ideia do uso que o diretor e seus eventuais parceiros fizeram de abstração, minimalismo, geometria, cores, sons. Há, no entanto, muito mais que procurar, excepcionais trabalhos envolvendo também stop-motion (A chairy tale), fábulas (C’est l’aviron), anti-belicismo (Neighbours) e até publicidade (New York Lightboard record). Quase tudo disponível gratuitamente em qualquer site de vídeos na internet.


Resta vencer a inércia que acomoda os humanos em seus nichos costumeiros, como o pescoço do Leão da Montanha se afunda na hórrida gravata, e conferir esses e outros grandes pequenos filmes, minúsculas doses imprescindíveis de brilhantismo artístico. É o mínimo.


P.S.: Os direitos das imagens pertencem a seus detentores.

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