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  • Foto do escritorAurélio Araújo

Atletas devem se posicionar politicamente?

Uma das coisas que mais me chamou a atenção no novo especial do comediante Dave Chappelle pra Netflix, batizado de 8:46, em referência ao tempo em que o policial ficou ajoelhado no pescoço do George Floyd, foi quando ele falou da crítica de Laura Ingraham ao astro do basquete LeBron James.

Laura é uma apresentadora loira da Fox News - um pleonasmo, eu sei, mas uma boa oportunidade pra recomendar o filme O Escândalo, vencedor do último Oscar de Melhor Maquiagem e Penteado, sobre assédios sexuais dentro da maior emissora de TV conservadora dos EUA. Enfim, ela não gostou quando LeBron se manifestou sobre o racismo. E deu a ele uma espécie de ordem: “shut up and dribble”, cale a boca e drible.


É uma ordem agressiva, que claramente marcou Chappelle. É uma ordem recorrente a atletas - a todas às pessoas famosas, na verdade, mas a atletas em específico. É a velha ideia de que, se você é famoso por alguma coisa, você deveria fazer apenas aquela coisa, nunca se posicionar, nunca opinar sobre nada. E não sei dizer porque ela é tão recorrente quando se trata de atletas, talvez seja porque ainda enxergamos atletas como pessoas com aptidões apenas físicas, sem nada pra dizer ou comunicar que não seja estritamente ligado à competição. Talvez porque existem muitos atletas negros. Não sei, realmente não sei dizer.


O que eu sei é que essa ordem, cale a boca e drible, é bem ofensiva vinda da Laura Ingraham pro LeBron James porque, como pontua Chappelle, ela é uma jornalista no máximo medíocre e ele um dos maiores jogadores da NBA de todos os tempos. Mas ela é branca, ele negro, o que faz ela achar que tenha direito de dar uma ordem a ele.


Mas LeBron nunca lhe deu ouvidos. Aliás, ele postou no seu Instagram, um dia após a morte de George Floyd, uma imagem comparando o policial ajoelhado no pescoço de Floyd ao jogador de futebol americano Colin Kaepernick ajoelhado durante a execução do hino nacional antes de um jogo. Aqui, cabe uma recapitulação.


"É por isso que nos ajoelhamos", diz LeBron
"É por isso que nos ajoelhamos", diz LeBron

Kaepernick, um bom jogador, que já tinha inclusive levado seu time, o San Francisco 49ers, ao Super Bowl, a grande final do futebol americano, inventou em 2016 uma nova forma de protesto. Durante a execução do hino nacional americano, ele resolveu se ajoelhar em vez de se levantar. Com isso, queria marcar posição contra a injustiça racial nos Estados Unidos, a violência policial e a opressão sistemática dirigida aos negros no país.


Bem, 2016, caso você tenha se esquecido, também foi o ano em que se elegeu a figura de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Mais do que isso, foi um ano em que Trump dominou o noticiário americano e mundial com suas declarações polêmicas (ok, racistas mesmo), sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis. Um deles, é claro, seria o protesto de Colin Kaepernick.


É preciso pontuar também que a NFL, a liga de futebol americano, está longe de ser apolítica. Pelo contrário, ela tem profundas ligações com as forças armadas americanas. Virou comum ver demonstrações militares antes dos jogos, acrobacias feitas pelos pilotos da aeronáutica, enfim, todo esse tipo de papagaiada. Na verdade, o Departamento de Defesa chegou a pagar a NFL para fazer “propaganda”.


"Sem políticas no meu esporte, garotada, agora vamos encenar uma foto famosa do exército aqui"

O protesto de Kaepernick se espalhou por toda a NFL, com vários atletas se recusando a levantar durante o hino nacional. A jogada de mestre de Trump foi conectar esse protesto a um sentimento anti-militar. Pra ele, se ajoelhar no hino seria como cuspir na cara dos bravos veteranos de guerra americanos. E, já como presidente, ele resolveu pressionar a NFL dizendo que ela deveria demitir quem “desrespeitasse” o hino.


Resumo da história: um bom jogador como Kaepernick está há 4 anos sem time. Os protestos dos demais jogadores cessaram, sendo proibidos pela NFL. E, no dia 25 de maio, numa triste coincidência, George Floyd foi asfixiado até a morte por um policial ajoelhado em seu pescoço durante 8 minutos e 46 segundos.


A essa morte, se seguiram inúmeras manifestações pelos Estados Unidos e, posteriormente, pelo mundo, em nome da justiça racial. Muitas delas se tornaram violentas. Deveriam ser pacíficas? Não sei. O que nós sabemos é que o protesto de Colin Kaepernick era pacífico, mas incomodou muito e ele está desde 2016 sem time pra jogar. Ou seja, parece importar pouco o método do protesto.


Colin Kaepernick, no centro, protesta ao lado de dois companheiros durante o hino nacional. "Desrespeito"

O “cale a boca e drible” de Laura Ingraham a LeBron James poderia ser “cale a boca e lance” no caso de Kaepernick, já que é o que se espera da posição dele no futebol americano, um quarterback.


O curioso é que esses protestos após a morte de George Floyd ajudaram a convencer muita gente de que um limite foi atingido. Tanto que a NFL voltou atrás e admitiu, há poucos dias, que foi errado ter se posicionado contra as manifestações dos jogadores durante o hino (embora não tenha feito nada pra resolver o desemprego de Kaepernick). Até a federação de futebol dos Estados Unidos - e agora estamos falando do nosso futebol, o soccer pra eles - liberou os atletas para fazerem o que bem entender durante o hino, revertendo a proibição de se ajoelhar que foi imposta depois que a jogadora Megan Rapinoe tinha passado a imitar Kaepernick.


Rapinoe, que não é negra mas sim mulher lésbica, disse à época que sentia que era sua obrigação “manter a conversa rolando”. Aliás, trata-se de um outro exemplo de atleta que costuma se posicionar de forma contundente. Durante a campanha dos EUA na Copa do Mundo feminina em 2019, ela disse que faria questão de não ir à Casa Branca caso o time levantasse a taça no final, já que despreza Donald Trump. Ele, é claro, não se furtou em responder que ela deveria primeiro ganhar pra depois falar. E ela ganhou. E não foi à Casa Branca, como nenhuma atleta daquela equipe campeã.


Talvez Trump pudesse ter dito “cale a boca e drible, Rapinoe”, se inspirando em Laura Ingraham.


No banco de reservas, Rapinoe se ajoelha e se recusa a cantar o hino

Mas a verdade é que o problema é muito maior que Trump ou Ingraham. Tem algo curioso em separar esporte da política, como se o esporte existisse no vácuo. Não existe absolutamente nenhuma federação esportiva no mundo que permita que os atletas se posicionem de alguma forma, nem contra causas que deveriam ser óbvias, como o racismo. E quando eu digo que “não existe absolutamente nenhuma”, estou exagerando, é claro, mas a situação chega a ser constrangedora quando você lê que a arbitragem da final do último campeonato brasileiro de tênis de mesa pediu que fosse recolhida uma faixa da torcida que dizia “raquetadas contra o fascismo”. Pois é.


O Comitê Olímpico Internacional, principal entidade esportiva do planeta, certamente não permite manifestações políticas. O mesmo comitê que deixou que a Alemanha nazista transformasse as Olimpíadas de Berlim em 1936 em um enorme veículo de propaganda para o mundo reagiu ferozmente contra Tommie Smith e John Carlos, respectivamente medalhistas de de ouro e bronze nos 200 metros rasos nas Olimpíadas da Cidade do México de 1968, porque eles fizeram a saudação dos Panteras Negras no pódio: luvas negras e punhos erguidos enquanto o hino americano era tocado. Eles também estavam de cabeça baixa e sem sapatos, vestidos com meias pretas, representando a pobreza dos afro-americanos.


Tommie Smith e John Carlos numa foto que entrou pra história

Achou exagero fazer uma conexão entre as Olimpíadas de 36 e 68? Pois saiba que o presidente do Comitê Olímpico Internacional, que expulsou Smith e Carlos da competição após aquele gesto, era o também americano Avery Brundage, que foi presidente do Comitê Olímpico dos EUA durante os jogos olímpicos do Führer. E que foi apontada a ele a imensa hipocrisia que era condenar o gesto dos dois sem ter se oposto à saudação nazista 32 anos antes, praticamente obrigatória durante as Olimpíadas de Berlim. E que ele respondeu dizendo que a saudação nazista era aceitável à época porque era uma “saudação nacional”, enquanto a dos Panteras Negras não pertencia a um país em específico, portanto não poderia deixar de ser punida.


O tipo de gesto permitido no pódio olímpico

Mas ao menos eles não precisaram devolver as medalhas, diferente do que se conta por aí. Talvez as pessoas confundam a história de Smith e Carlos com a do boxeador Muhammad Ali, um outro atleta afro-americano que jamais aceitou a ordem de “calar a boca e socar”, como talvez tivesse dito Laura Ingraham a ele.


Ali também foi medalhista de ouro olímpico, sendo campeão nos jogos de Roma, em 1960. Segundo ele, ao voltar para os Estados Unidos, teria jogado fora a medalha depois de um restaurante se negar a servi-lo por ser negro.


Se a história é real ou não, os biógrafos de Ali discutem até hoje - isso é, discute-se a parte de ele jogar a medalha fora. Todos concordam que isso é muito mais discutível de que o fato de que um restaurante nos EUA na década de 60 se recusaria a servir um negro, algo comum mesmo se aquele fosse um campeão olímpico representando o país.


Mas Muhammad Ali teve seus títulos de boxe cassados quando ousou não calar a boca e aceitar ser convocado para a Guerra do Vietnã, em 1966. Tinha então 24 anos, estava ainda no auge da forma. Foi preso e perdeu os títulos que já tinha acumulado até ali, além de não poder lutar mais. Eventualmente, a Suprema Corte americana deu a ele o ganho de causa e ele voltou a fazer lutas históricas como aquela contra George Foreman, na já extinta república do Zaire, em 1974.


Muhammad Ali e o último cara que teve coragem de dizer a ele pra "calar a boca e lutar"

Mas foram quatro anos parado, sem poder praticar esporte, porque ousou protestar. Não lembra um pouco a história de Colin Kaepernick?


O tragicômico disso tudo é que, mais uma vez é preciso dizer, o esporte não existe no vácuo. Atletas fazem parte da sociedade, sejam eles ricos ou não - aliás, nunca é demais lembrar que, entre os atletas, assim como em quase toda profissão, os realmente ricos e milionários são uma minoria. Por que uma pessoa, qualquer uma, deveria ser impedida de falar sobre um assunto? Seria ela uma cidadã de segunda classe?


Aliás, como em quase todas as áreas da sociedade, o esporte é comandado por homens engravatados. A maioria deles, é claro, brancos. É algo parecido com o que diz Spike Lee sobre o cinema: é mais fácil um negro dirigir um filme do que presidir um grande estúdio de Hollywood. Está nas mãos dessas pessoas o real poder, e isso ninguém vai ceder tão facilmente.


Aliás, em 2014, Donald Sterling, então proprietário de um time da NBA, o Los Angeles Clippers, teve áudios de comentários racistas seus divulgados. Na hora, foi impossível não ver a contradição: um homem branco absurdamente racista, mas que faturava milhões às custas de seus jogadores negros. Na época, os jogadores dos Clippers fizeram também um protesto silencioso e pacífico, escondendo o símbolo da equipe ao usarem suas camisas do avesso.

Camisas dos Clippers viraram apenas panos vermelhos com os jogadores vestindo-as ao contrário

A liga foi pressionada pelos próprios jogadores a forçar Sterling a vender o time. Desde então, até mesmo o termo "owner", que se traduz para "dono" ou "proprietário", foi banido das comunicações oficiais da NBA. Pegava mal um país com história escravocrata ficar falando do "dono" de alguns jogadores negros...é como se, no futebol brasileiro, a gente falasse em "proprietário" do Neymar ou do Gabigol.


Quer dizer, já é uma proibição frágil essa que impede que os atletas se manifestem. Melhor não dar ideia usando as palavras que podem levar alguém a questionar toda a lógica da indústria esportiva...

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