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poderosa da moda ou madastra má - em cruella, a vilã clássica segue firme e forte



embora a história original dos 101 dálmatas não seja estritamente um conto de fadas, graças à disney ela acabou virando, junto com outros contos clássicos, parte de um imaginário coletivo na infância ocidental que nos é familiar e tradicional. todo mundo identifica cruella, com seu cabelo bicolor, casaco de pele e estranha obsessão por dálmatas.


cruella é, desde sua origem, diferente das demais vilãs clássicas de histórias infantis. não é a madastra ou madrinha malvada de uma inocente jovem à mercê de sua ira e poder. sua raiva não é direcionada à outra mulher - mais jovem, mais bela, mais pura - como costumamos ver em contos de fada. de muitas maneiras, tanto a animação da disney, de 1961, quanto o livro original, de 1956, propõe uma narrativa diferente do que o que era comum: cruella é uma mulher moderna. mimada, egoísta e cruel? sim. mas ainda assim, moderna.



filha de um rico peleteiro, cruella está acostumada a ser servida e a ter todos os seus desejos atendidos. ela não representa mais aquela figura materna vingativa e rancorosa, mas outro tipo de ameaça feminina - a mulher herdeira, rica, poderosa, independente e impiedosa. ela não é, necessariamente, uma ameaça a outras mulheres diretamente, como as madastras dos contos de grimm. ela nem enxerga as outras mulheres, tamanho é seu narcisismo.


cruella é uma ameaça a toda uma organização social que sobrevive num equilíbrio tenso de valores impostos a todas e regras de como agir e como se portar. cruella não é casada, não tem família, não é submissa e só age em prol do que diz respeito a si mesma. é o oposto da mulher de família ideal ocidental.


essas características de independência (não desejáveis em uma mulher) são, no livro e filme originais, associadas a outros trejeitos, monstruosos, tenebrosos: o ímpeto assasino por lindos cãezinhos dálmatas, a grosseria e esnobismo, a aparência decrépita que só uma mulher de moral podre poderia ter... cruella serve pra gente lembrar que tipo de mulher não ser.



a vilã deixa de ser uma filha de peleteiro e passa a ser uma estilista de moda na versão live-action de 1996, com glenn close como cruella de vil. é também como estilista que ela nos é apresentada no novo filme cruella, estrelando emma stone no papel principal.


colocar essa personagem como uma mulher poderosa no mundo da moda é interessante nos dois filmes, especialmente se pensarmos que durante muito tempo o mundo da moda foi um dos únicos em que mulheres conseguiam alcançar posições de sucesso e alta hierarquia. era, portanto, o único espaço em que era possível encontrar mulheres poderosas, opinionadas, de personalidade forte e postura de líder.


mulheres bem-sucedidas em posição de poder, historicamente e na cultura pop, incomodam. elas são demonizadas, transformadas em bruxas urbanas, servem como exemplo da corrupção do poder. e se, na vida real, a moda é onde vemos mulheres de poder, no cinema e na tv é na moda, também, que encontramos essas mulheres-demônio. pensa na meryl streep em o diabo veste prada.


na versão de 101 dálmatas de 1996, a moda serve apenas como pano de fundo que ajuda a justificar a superificialidade e crueldade da vilã. na nova versão, no entanto, a narrativa vai mais longe: moda é a própria ferramenta que permite com que cruella - originalmente estella, uma órfã aspirante a estilista - exerça seu lado mais verdadeiro, desumano e egocêntrico.



e ela aprende a usar a moda como portal pra sua versão mais sombria com sua mentora e rival, "a baronesa", que, também, é uma mulher poderosa - e odiosa - da moda. é como se miranda priestly estivesse mentorando - e competindo - com blair waldorf. é dose dupla de maldade fashionista, pra ninguém esquecer que a verdadeira vilã, a responsável por corromper essas duas mulheres, é a moda.


[a partir daqui o texto pode conter alguns spoilers do filme cruella, de 2021, disponível no disney+]


mas se no livro e animação originais a gente é apresentado a uma vilã moderna, que se afasta da clássica trope da madastra dos contos de fada, no mais novo filme, ao criar uma história de origem que explique o comportamento vil da personagem, a disney acaba optando por apresentrar uma vilã que volta à velha fórmula da madastra má.


cruella, agora como protagonista e não vilã, ao invés de ser uma princesa, é uma espécie de anti-heroína. ela também desafia o status quo da mulher padrão - honrando o legado de independência da cruella original.


mas ao contrário do que originalmente nos era proposto em 1956 e 61 - ela era assim porque era fruto de uma criação privilegiada e abastada, filha mimada de um rico comerciante, solteira e sem filhos - na nova proposta ela é assim porque, como tantas outras protagonistas de histórias infantis, sua mãe e sua madastra a deixaram assim.


é curioso, numa história como a de cruella - que apela tanto pra uma estética e até uma narrativa condizentes como nosso tempo - o uso dessa figura materna que afeta profundamente o desenvolvimento de uma protagonista mulher, jovem, e altamente impressionável. se a cruella das versões originais se destacava justamente por ser uma vilã que escapava ao estereótipo, a versão mais recente peca por trazer uma vilã, justamente, tão estereotipada.



é certo que cruella inverte os papéis: ao invés de uma mãe biológica amorosa que morre cedo e abandona a filha nas mãos de uma madastra maldosa, estella tem uma madastra que a ama - e morre a deixando órfã. e, como aprendemos na reta final do filme, foi sua própria mãe que requisitou seu assassinato. de qualquer maneira, a mãe e a madastra cumprem seu papel - uma de representar o amor e a vida em família (que são logo perdidos com a morte da figura materna), e a outra, que representa o ciúmes e o rancor, e que vê a menina como rival, como ameaça a sua própria beleza e juventude.


é mais uma história, como tantas outras com jovens protagonistas que passam por provações, em que o sofrimento e os obstáculos são criados por outra mulher, normalmente uma figura materna ou da família.


em cruella, assim como em muitos contos infantis, não há figura paterna: o pai é invisível, inexistente, uma figura fantasmagórica que assombra justamente por sua ausência. em alguns contos ele morre, em outros sequer é mencionado. é curioso que enxerguemos a madastra como a vilã e causadora dos problemas e traumas e esqueçamos, justamente, que essa também é uma mulher lidando com a falta da figura masculina da família - seu marido.


nesse tipo de narrativa, é a ausência do pai - não a morte da mãe ou a maldade da madastra - que coloca a engrenagem em movimento, que permite uma dinâmica familiar de ciúmes, inveja e rancor. o que esses contos nos mostram é o que acontece com uma família, com uma mulher, com uma filha, quando um pai não está presente. em cruella não é diferente: onde está o pai de estella quando sua mãe decide assassiná-la? onde está o marido da baronesa, quando ela está dando luz à sua primeira filha? o que fez esse homem para alentar e ajudar esposa e filha e, quem sabe, evitar maiores danos?


durante todo o filme somos abocanhados e constantemente surpreendidos pela ambição visualmente expansiva de cruella e baronesa, que no fim das contas são um grande palco pra encobrir o som ensurdecedor da pergunta: e o pai, cadê? se à primeira vista parece que cruella se tornou o que se tornou por causa da frieza de sua mãe e iuma vida de perrengues, numa análise mais aprofundada não podemos deixar de pensar: e o pai, com sua grandiosa ausência, representada por sua falta de posicionamento e subsequente morte, não afetou a vida dela também?

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