top of page
  • Foto do escritormelody erlea

de kurosawa a the affair: o efeito rashomon


a série the affair acabou ontem depois de cinco temporadas, mas o grande bafafá pra quem, como eu, abandonou a série na terceira temporada é a canção que fiona apple gravou especialmente pro finale da série, the whole of the moon, originalmente da banda the waterboys.

eu tô amando todas essas surpresas da fiona apple ultimamente - lembram da entrevista pra vulture e dos créditos finais que ela cantou em bob's burgers?


a parceria de fiona com the affair não é de agora - a música tema, container, é uma composição original da fiona pra série, e foi por causa dela que comecei a assistir o programa (isso e uma vontade louca de me afogar em tristeza)

i've only one thing to do and that's

be the wave that i am and then

sink back into the ocean


o refrão da música me remete demais ao fim do conto a sereiazinha, em que ela simplesmente aceita seu destino como espuma do mar pois não há mais nada que ela possa fazer pra consertar aquela situação - ou até há mas não algo que ela tope fazer. é um aceitar-seu-destino carregado de melancolia, mas também um certo alívio. minha versão preferida do livro, e também a que eu tenho desde criança, tem ilustrações que carregam a mesma melancolia da música da fiona, e que também me remetem muito à atmosfera da série, que se passa na praia, em montauk, nas férias de verão, mas é tão sombria e pesada.

não se preocupem com spoilers porque eu vi eu não vi o episódio final e tô mais interessada em falar sobre as duas primeiras temporadas, que são realmente primorosas. a série começa assim: noah, sua esposa helen e seus quatro filhos vão passar as férias de verão na cidade praiana de montauk. numa lanchonete noah conhece a garçonete alison e eles passam a ter um caso.

os episódios são divididos em duas partes: a primeira metade é a versão de noah da história e a segunda metade é a versão da alison. as premissas são duas: a gente distorce a verdade da maneira que pode pra que ela aja a nosso favor E/OU a gente é enganado pelas próprias memórias, que também se submetem ao nosso filtro emocional e a nossa vontade de acreditar numa certa versão da história - e de nós mesmos.


fato é que as duas versões tem diferenças às vezes sutis, às vezes enormes, que vão pintando aqueles personagens de maneiras diferentes, contraditórias, egoístas. no fim, mais do que saber qual versão é mais verdadeira, a série é legal porque nos faz escolher qual versão queremos que seja verdadeira, e isso diz muito mais sobre nós do que sobre a história em si. é a velha história da capitu: não é sobre o que ela fez ou não, é sobre o escancaramento do tipo de pessoa que acredita na traição e o tipo de pessoa que acredita na inocência de capitu. é sobre o tipo de pessoa que cada um de nós é quando nos vemos frente a esse dilema ficcional.


em the affair é maravilhoso ver como as personagens mudam conforme o ponto de vista e como isso é retratado na tela: na versão de noah, alison flerta com ele desde o primeiro momento e tá sempre de minissaia, alcinha fina, mostrando pele, sorrindo muito e encostando nele. na versão dela ela costuma estar de cardigã, ou de calça jeans, com roupas de maneira nenhuma provocativas. alison vê helen, esposa de noah, como uma mulher chique e glamourosa, sempre bem vestida e elegante e dando ordens a seus muitos empregados. na versão de noah, sua esposa é desleixada, tá sempre de óculos, rabo de cavalo e explodindo em gritos de tanto cansaço e stress (afinal eles tem quatro filhos).


nas duas versões, por mais que haja diferenças, é possível ver como o relacionamento escondido de noah e alison vai aos poucos intoxicando todas as relações familiares ao redor deles, como num efeito dominó que a gente não enxerga quem deu o primeiro peteleco, só vai vendo tudo desmoronar. cada um deles preso em sua própria perspectiva, porque o que vemos e como contamos nossas histórias depende radicalmente de nossas referências, valores, memórias, criações diferentes...


essa diferença de perspectiva de diferentes personagens sobre os mesmos acontecimentos chama efeito rashomon, e tem esse nome por causa do filme homônimo de kurosawa de 1950, em que um estupro e assassinato são descritos por quatro testemunhas de maneiras completamente diferentes e contraditórias.


o efeito rashomon é parte atuante de quase qualquer história de mistério do tipo agatha christie em que cada personagem tenta convencer os outros - e ao leitor - de seu álibi. a gente vai lendo, observando cada versão e o comportamento de cada personagem, e tira nossas conclusões. mas tem alguns escritores e cineastas que conseguem usar essa técnica com maestria.


em cidadão kane, de 1941 (9 anos antes de kurosawa lançar seu rashomon - embora ele tenha se inspirado em dois contos do autor japonês ryūnosuke akutagawa, um de 1915 e outro de 1922), o milionário charles foster kane morre em sua mansão e um repórter investiga a estranha morte entrevistando os conhecidos, colegas de trabalho e pessoas próximas de kane. elas nos dão um vislumbre da vida de kane através de flashbacks, e cada uma delas lembra do falecido de uma maneira diferente.


o escritor chuck palahniuk, autor de clube da luta, usa o efeito rashomon em seu livro rant - em que buster casey, o protagonista, sumiu sem deixar vestígios após ser o paciente zero de uma epidemia de raiva nos estados unidos. a história se passa num futuro distópico muito louco, e nós, os leitores, vamos pouco a pouco conhecendo e entendendo quem é buster pelos relatos de seus amigos, familiares, professores, colegas de trabalho e mais um monte de personagens macabros e peculiares que tiveram algum tipo de contato com ele. como costuma ser quando analisamos perspectivas diferentes de uma mesma situação, as histórias sobre ele são absurdas, contraditórias, fantasiosas e loucas.


mais recentemente a escritora de suspenses gillian flynn causou um fuzuê com seu gone girl (garota exemplar, em português), que virou filme com o ben affleck. no livro, amy dunn, esposa de nick, desaparece, e vamos vendo o desenrolar da história através dos relatos de nick e de amy, separadamente, desde quando se conheceram até os acontecimentos alarmantes atuais.


gone girl deve ser o livro de maior sucesso de flynn, mas não é o único em que ela usa o efeito rashomon. em dark places, somos levados a montar o quebra-cabeça do assassinato de uma família inteira no interior dos estados unidos nos anos 80. acompanhamos o dia de cada um dos familiares até o momento do massacre, enquanto questionamos a prisão de um dos suspeitos, ben, um dos dois únicos sobreviventes do crime, e a sanidade de libby, sua irmãzinha mais nova que testemunhou os assassinatos e sobreviveu com suas memórias infantis daquela noite.


mas pra mim o filme que melhor utilizou o efeito rashomon - de maneira tão sutil que a gente nem percebe - foi brilho eterno de uma mente sem lembranças. o filme é sobre a separação de joel e clementine (jim carey e kate winslet), e a gente vai sendo apresentado à história dos dois - e às motivações dos dois para se separarem - através de suas lembranças, do dia em que se conheceram ao dia da briga final. é lindo ver aquela construção de algo entre duas pessoas completamente diferentes, cada uma com seus próprios problemas na cabeça e tentando achar no outro tipos diferentes de acalento e amor. é louco ver como o conflito dessas perspectivas diferentes contribui pro fim do amor, mas também pra reconstrução dele. é incrível ver como as lembranças de cada um estão encharcadas, afogadas nas experiências pessoais e suas próprias carências e falhas.

o que eu mais amo em brilho eterno é que, assim como em the affair, a apresentação estética dos personagens é muito importante pra construção daquelas duas perspectivas e, consequentemente, da nossa ideia daquelas pessoas. a clementine muda a cor de seu cabelo conforme seu humor e seu momento de vida, e isso é parte ativa da estratégia narrativa do filme, nos ajudando inclusive a entender a cronologia dos acontecimentos.


quando conhece joel seu cabelo é verde, cor de renovação e renascimento, e ela usa um moletom laranja chamativo, como alguém cheio de energia transbordando cores fortes e vontade de viver novas experiências. no começo do relacionamento seu cabeço é vermelho, cor da paixão mas também do alerta - saca aquele momento no relacionamento que a gente tá se deixando apaixonar mas ao mesmo tempo meio prestando atenção pra ver se realmente a gente deve fazer isso? o cabelo tangerina que vem depois, é o mais significativo - tanto é que vira a alcunha "clementine tangerine". é o vermelho da paixão já desbotado, o momento em que a vida real começa a entrar pelas frestas e os dois começam a conhecer seus lados menos apaixonantes. e depois que eles terminam, clementine passa a ter o cabelo azul, representando the blues, sua tristeza, sua solidão e a frieza da vida - mas ela volta a usar seu moletom laranja, talvez como um símbolo de tempos melhores que passaram e quem sabe voltarão.

e olha que louco: assim como the affair se passa em montauk, brilho eterno também começa e termina nessa mesma cidade, que existe de verdade no estado de nova york e é um destino comum pra feriados e fins de semana porque dá pra chegar de trem.


dizem por aí que montauk é a sede do projeto montauk, uma série de experimentos secretos do governo norte-americano que incluem viagem no tempo e no hipersepaço e teste de habilidades telecinéticas. a série stranger things é amplamente inspirada nos rumores do projeto montauk (inclusive o nome provisório da série era montauk e ela ia originalmente se passar na própria cidade de montauk)

galpão militar abandonado em montauk no qual stranger things se inspirou

fiona apple, the affair, garota exemplar, chuck palahniuk, cidadão kane, akira kurosawa, brilho eterno de uma mente sem lembranças e stranger things: as distância que é possível percorrer se a gente olhar direito pra cultura pop!


1 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page