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Diversidade na passarela não é suficiente: o racismo na moda brasileira


donata meirelles, ex-diretora da vogue, em sua festa de aniversário

A moda no Brasil é a moda da riqueza, da classe alta, da elegância ostensiva que se obtém com marcas e grifes


Desfile do estilista Ronaldo Fraga em 2014 , no qual modelos usaram “cabelo” de palha de aço. Crédito: reprodução Youtube

Amoda brasileira está em crise. Não é de agora, não é recente. Acredito, inclusive, que a moda brasileira está em crise desde que nasceu. Ela é fruto de conflitos sociais complexos, intrínsecos à dinâmica e à construção desse país, mas que afloram nas contradições do sistema de moda, seu funcionamento e a mensagem que se quer construir sobre o que é uma moda, realmente, brasileira.


Venhamos e convenhamos: a moda mainstream desse país não nos deu nada do que nos orgulhar desde Gisele Bundchen. E mesmo antes disso, afora, quem sabe, Zuzu Angel, que conversas reais a moda brasileira nos trouxe? O que você pensa quando pensa em moda no Brasil?


Gloria Coelho, Dudu Bertolini, Reinaldo Lourenço, Herchcovitch….. esses são nomes sussurrados pelos círculos de high society de certas metrópoles brasileiras, mas nunca conseguiram estender seus braços para além dessa bolha rica e branca. Constanza Pascolato, Regina Guerreiro, Érika Palomino, Lilian Pacce… O jornalismo mainstream de moda é comandado por mulheres brancas, ricas e privilegiadas. A moda no Brasil é a moda da riqueza, da classe alta, da elegância ostensiva que se obtém com marcas e grifes.


Mais do que isso: a moda brasileira é a moda dos elogios, do não criticar quem já tem nome feito, do fechar os olhos a absurdos, do pintar pessoas como gênias quando são, tão somente, fruto de um sistema que privilegia alguns poucos.


Vamos às anedotas ilustrativas.


Em 2015 eu estava terminando uma pós-graduação quando descolei um trampo na redação de um site de moda de uma jornalista consagrada. Me ofereceram uma vaga temporária não remunerada para escrever artigos pro site, durante um mês, para cobrir as férias de outra redatora. Acabei ficando naquela redação por 4 meses.


Durante SPFW daquele de 2015, juntaram-se a mim e a equipe do site outras garotas, contratadas temporariamente, sem remuneração, para ajudar na cobertura do evento. Eram, principalmente, fotógrafas e videomakers, ainda na faculdade, começando a montar um portfólio e empolgadas pela oportunidade, ainda que sem salário. Dois anos depois, a jornalista foi exposta nas redes sociais por oferecer uma vaga de trabalho sem remuneração para cobertura da semana de moda, pela qual publicou um pedido de desculpas em que responsabilizava, parcialmente, um membro da equipe e aproveitou para citar nomes de pessoas de sucesso na área do jornalismo de moda que ela, uma dia, havia empregado, como evidência de sua bondade e das portas que abria.


Foi essa mesma jornalista que, semanas atrás, sorriu em silêncio enquanto o estilista Reinaldo Lourenço tecia comentários xenófobos e gordofóbicos numa live sobre a moda brasileira.


Moda a qualquer custo: Como são fabricadas as peças do seu guarda-roupa

A denúncia foi publicada no perfil do Instagram Moda Racista, que existia desde 2019 mas há uma semana vinha postando diversas denúncias sobre racismo, gordofobia, machismo e outros tipos de abuso na indústria da moda, nomeando diversos profissionais – entre eles a estilista Gloria Coelho e o maquiador Daniel Hernandez. Funcionários, modelos, estagiários e assistentes estavam enviando seus depoimentos para o perfil, que os postava anonimamente.


O perfil no Instagram saiu do ar, após o estilista Reinaldo Lourenço acionar uma ação em caráter de urgência na 39ª Vara Cível de São Paulo, que foi negada pela juíza Juliana Pitelli. A assessoria da rede social afirmou que não é responsável pela derrubada da página. Ainda assim, o que as denúncias do perfil trouxeram eram relatos de algo que muitos já sabiam: a moda – aquela moda mainstream, das semanas de moda, da Vogue – aqui no Brasil só traz diversidade nas redes sociais, quando esse for o trending topic. Nos bastidores, as dinâmicas de poder, trabalho manual e criativo, e méritos seguem na boa e velha organização colonial.


Algumas das personalidades expostas e acusadas publicaram vídeos, textos e mensagens de desculpas e comprometimento com mudança, mas a verdade é que os diversos pedidos de perdão e as tentativas de mudança da indústria da moda acabam sendo mais embaraçosos e errados do que quando a moda é elitista e insensível.


Temos exemplos óbvios, como a festa de aniversário de Donata Meirelles em que ela diz ter tido a intenção de homenagear a cultura baiana mas acabou reproduzindo um cenário de sinhá e escrava e utilizando mulheres negras como decoração. Temos exemplos mais sutis, porque caem sob a alcunha de arte e performance, como o desfile da Cavalera de 2015 que trouxe índios Yawanawás para a passarela – os transformando em espetáculo exótico para um público branco e rico. Tem exemplos que causam polêmica, como os cabelos de palha de aço de Ronaldo Fraga em 2013 e as estampas de Marielle com um alvo na cabeça de 2019. Há o exemplo da marca de marketing slow fashion e sustentável loja três, cuja dona foi acusada de esconder as funcionárias negras no fundo da loja, pedir pra que uma funcionária perdesse peso e criticar um funcionário homossexual por ser afeminado demais.

A moda no Brasil é a moda da riqueza, da classe alta, da elegância ostensiva que se obtém com marcas e grifes Desfile do estilista Ronaldo Fraga em 2014 , no qual modelos usaram “cabelo” de palha de aço.

A realidade é que representatividade na passarela sempre será apenas um show se não houver uma retirada em massa do dinheiro, do alcance e do acesso a produtos de qualidade das mãos das mesmas pessoas brancas, endinheiradas o suficiente para cursar uma faculdade particular de moda, preconceituosas e pouco atentas a seus próprios erros. O desmonte do racismo não se dá por meio de boas intenções – principalmente porque pessoas com boas intenções dizem e fazem coisas racistas o tempo todo sem se dar conta.


Pedidos de desculpas e a promessa de mudar não alteram as estruturas que permitem que pessoas brancas se beneficiem do racismo estrutural e pessoas não-brancas sejam exploradas por ele. Mais do que trazer índios para as passarelas, ou passar a contratar modelos negras (e fazer o grandiosíssimo esforço de tratá-las como seres humanos em castings e entrevistas), precisamos nos perguntar se as ações sendo divulgadas estão tendo resultado real ou estão sendo usadas para, mais uma vez, manter a ordem hierárquica do sistema em brancos estão sempre se beneficiando mais do evento multicultural ou da diversidade apresentada na passarela ou nas redes sociais.


Diversidade real na moda acontecerá quando estilistas não-brancos possuírem tanto poder, espaço e reconhecimento quanto estilistas brancos. Quando o lucro e a riqueza do mercado da moda não estiver apenas em mãos brancas. Quando a ética na linha de produção por mais do que discurso de rede social. Quando os grandes veículos de jornalismo e marketing de moda tiverem equipe diversa em todos os níveis de trabalho.


Há épocas, de maior revolução política, em que vemos mudanças na moda. Givenchy e Saint Laurent ficaram famosos nos anos 70 por escolher majoritariamente modelos negras – alguns desfiles, inclusive, sem nenhuma modelo branca. O crescimento da disco e da cultura pop negra também foi boa para a diversidade na mídia, na TV e nas passarelas. Mas muitas das pessoas protagonizando essas mudanças estão agora mortas, e muito de suas ideias foram perdidas em prol de um apego a ideias colonialistas tradicionais de mercado.


Agora, como na década de 70, há mudanças acontecendo ao redor do mundo: a revista Harper’s Bazaar apontou sua primeira editora-chefe negra em 153 anos de existência. Aqui no Brasil, estilistas como Isaac Silva ganham notoriedade por sua inventividade na modelagem e resgate a elementos da cultura afro-brasileira.


Ainda assim, há muito a se fazer para que o Brasil tenha algum impacto real na moda – tão grande quanto foi Gisele Bundchen. Se uma modelo – aposentada das passarelas – ainda é o único grande tópico de moda que esse país conseguiu fazer aparecer nos últimos anos, qual é a pertinência da nossa moda?


Deixo Jum Nakao responder, com sua Costura do Invisível: o último desfile do estilista, de 2004, que parece ser um recado sobre a única solução possível para a moda brasileira – destruição completa, para quem sabe começarmos algo novo, melhor.


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