melody erlea
frozen 2 e a importância do figurino na animação

em 2014, 3 milhões de vestidos da elsa e da anna foram vendidos na américa do norte. isso são milhões e milhões de meninas querendo se vestir como uma princesa da disney, e não por acaso - o trabalho por trás dos figurinos de anna e elsa leva em conta a história das personagens, a tecnologia de animação disponível e também a possibilidade de ter que transformá-los em vestidos de preço acessível que as expectadoras do filme queiram ter em seus armários (ao invés do vestido de alta costura que seria feito caso as roupas fossem pensadas e criadas, na vida real, como roupas de realeza com o mesmo cuidado, o mesmo nível de detalhe e os mesmos tecidos pensados para o filme).

houve uma época áurea da animação em que absolutamente tudo era desenhado e pintado à mão. significa que pra fazer uma roupa de príncipe com todos os detalhes necessários, cada botãozinho e medalhinha teria que ser desenhado pacientemente frame a frame. é por isso que os vestidos das princesas clássicas e os trajes de seus príncipes encantados tinham tão poucos detalhes (mas vamo combinar que com um vestido que fica mudando de azul pra rosa e de rosa pra azul que nem o da princesa aurora ninguém precisa de mais detalhe nenhum)
as roupas e figurinos das grandes produções de animação tem evoluído junto com a tecnologia por trás desses filmes - a computação gráfica possibilitou reproduzir e animar detalhes intrincados, desenvolvendo o campo da criação de figurino para desenhos animados. o costume designer guild awards (uma das categorias dos SAG awards) nomeou pela pela primeira vez em 2016 uma figurinista de animação, deborah cook, pelo stop-motion kubo and the two strings. o presidente da associação, salvador perez, disse que até então as animações não creditavam figurinistas - eles eram creditados como desenvolvedores de personagem, e portanto não podiam ser nomeados ao prêmio. deborah fez questão de aparecer nos créditos como figurinista, e pode concorrer.
de lá pra cá, o campo tem se aprofundado. já havíamos conhecido a estilista edna mode, especialista em roupas de super herói, personagem do filme os incríveis de 2004. mas foi só na sequência os incríveis 2, de 2018, que o assunto moda foi colocado em foco no filme, que contou com uma equipe toda de figurinistas, alfaiates e especialistas em beleza e cabelo.
deanna marsigliese, uma das designers de personagem trazida à produção para pensar nos figurinos, chegou a criar versões reais de algumas das roupas da animação. ela levava amostras de tecidos para que os animadores entendessem sua textura, observassem seu movimento, entendessem quão opacos ou brilhantes eles eram - tudo pra fazer um figurino o mais verossímil possível: imagina uma estilista renomada como edna mode sem roupas apropriadas a seu trabalho, suas ideologias, sua história.

para criar as roupas de edna mode, deanna voltou ao primeiro filme para entender quem é essa mulher: uma estilista que odeia modelos (por isso faz roupas e desfiles para super heróis), que gosta de uma moda dramática, corajosa e heroica, e, de acordo com o diretor do filme, de ascendência alemã e japonesa. deanna então se inspirou em designers renomadas japonesas, como rei kawakubo, da marca comme des garçons, e seus visus confortáveis, ainda que de alta qualidade, e bem mais simples se comparado às suas criações para as passarelas. o drama, no caso de edna, se dá no uso de proporções, já que ela é minúscula e usa peças volumosas, com estampas grandes e gráficas
a vilã do filme, evelyn deavor, tem um estilo clássico e fashionista com itens masculinos e um toque de róquenrôu: as inspirações para seus figurino são patti smith, annie lennox, laurie anderson e diane keaton (imagino que nos tempos áureos de annie hall). os visus tem cores neutras, estampas discretas normalmente em preto e branco, muitas camisas, calças secas, e algumas peças estatement como um mini vestidinho mod com botas que terminam nas coxas e casacos invejáveis. o p&b é pontuado por um batom vermelho - cor que aparece às vezes em outros pequenos detalhes de seus looks. preto, branco e vermelho. pensa: cruela cruel, úrsula, malévola, jafar, capitão gancho, a rainha de copas... essas três cores estão sempre presentes, o vermelho às vezes acompanhado ou substituído pelo roxo. então mesmo que evelyn não tenha a estética comum exagerada de uma vilã, ela traz em suas roupas elementos clássicos que nos remetem à ideia do que é ser vilão.
é importante que essas desenvolvedoras de personagem estejam tendo seu trabalho como figurinistas reconhecido. embora pensemos em figurino como um produto final material que alguém vai vestir, criar as roupas de um personagem, mesmo que seja para animação, é um trabalho que envolve pensar em quem é aquele personagem, e que tipo de roupas ele usaria. e vai para além das roupas, no caso das animações: é pensar no cabelo, o andar, o jeito de se mexer, a maquiagem.... é uma consultoria de estilo completa, basicamente um trampo de desenvolvimento de marca pessoal para uma pessoa fictícia.

para a criação do figurino de frozen 2, as designers visuais brittney lee e griselda sastrawinata-lemay pesquisaram a fundo os mínimos detalhes. o time criativo foi para noruega, finlândia e islândia para pesquisar referências, de desfiles de alta costura e moda vintage dos anos 40 a roupas típicas e tradicionais da região, além de adicionar ao moodboard tudo que tivesse uma vibe cristalina (gente, imagina esse trampo, é o trabalho dos sonhos: viajar pra países longínquos e olhar pra roupa). brittney disse que eles tem todo tipo de cuidado, inclusive saber a direção de um bordado.
assim como em os incríveis 2, o movimento, caimento e textura dos tecidos foram estudados - uma roupa feita de veludo não pode se mover do mesmo jeito que tule ou seda, e essa diferença precisava ficar clara. porque as irmãs tem cenas nadando, a equipe precisava saber como os tecidos se portavam embaixo d'água quando vestidos por alguém, quando boiando soltos, e depois, fora da água, quando estivessem ensopados - isso tudo antes de terem os looks finais definidos.

e ó como figurinista de animação tem que ser cuidadoso mesmo: brittney e griselda consideraram inclusive o fato das protorganistas, anna e elsa, estarem 3 anos mais velhas, e decidiram que anna não estaria mais usando tranças, que infantilizavam a personagem. no filme novo ela tem o cabelo solto, que traz uma maturidade ao visu, deixando clara a diferença de idade das irmãs do primeiro e no segundo filme. ó as coisas que às vezes a gente nem pensa: soltar o cabelo muda tudo.
enquanto o primeiro filme se passava em arendelle, terra natal das duas princesas, a sequência se passa numa viagem, tipo uma road trip cheia de aventuras, e elas precisavam de roupas que fossem práticas pra viajar: anna e elsa correm, nadam, e se movimentam muito, e não dá pra fazer essas coisas usando vestido longo. pra elsa, isso deu uma trabalheira, porque seus vestidos e capas longuíssimos eram meio que sua marca registrada, a deixando alongada, com um perfil elegante e longilíneo. quando os desenhistas eliminaram isso, a personagem não parecia mais ser a elsa.
é por isso que as grandes princesas mudam pouquíssimo de roupa: a bela tem a roupa dela de viver na vila e o vestido amarelo de festa, a cinderela tem a roupa de criada e o vestidão da fada madrinha, a bela adormecida também tem uma roupa de dia-a-dia e um vestido de gala.... as roupas tornam as personagens facilmente reconhecíveis, elas grudam na nossa cabeça como parte essencial daquela pessoa.

frozen 2 se passa no outono (cês devem lembrar que o primeiro filme se passava no verão, até a elsa decidir congelar tudo, se isolar, e let it go), e por isso as meninas precisavam de roupas outonais. anna tinha cores fáceis de adaptar ao outono, e ganhou uma capa de viagem estampada com símbolos representando arendelle e colheita (aqui no hemisfério sul a gente associa colheita à primavera, mas em países nórdicos a estação da colheita é o outono).
a roupa da anna é o link delas com sua terra natal, é a importância da família e das origens. ao mesmo tempo, anna representa as relações diplomáticas que seu país tem com outras nações: ela usa um cinto obi, típico das vestimentas tradicionais japonesas. o diretor de arte do filme, michael giaimo, diz que gosta de pensar que arendelle já teve visitantes importantes de muitos outros países, e com certeza houve troca de presentes e, também, influência dessas trocas culturais no jeito de vestir de anna. o uso de referências a outros países também serve pra representar o crescimento da princesa, o fato de que ela se torna ciente do mundo para além de arendelle.

já com a elsa não foi possível aproveitar as cores outonais. qualquer paleta de cores que saísse dos azuis claros e frios, dos tons de gelo e do branco perdia a sensação que a princesa elsa deveria passar. as cores foram mantidas, mas o comprimento das roupas precisou mudar. para que ela usasse roupas mais curtas e confortáveis mas que ainda transmitissem a ideia de autoridade - afinal, elsa é a rainha de arendelle e deve ser identificada como tal com facilidade - a equipe criou um conjunto de vestido e capa, e tanto elsa quanto anna usam calças por baixo dos vestidos. adicionado ao visu de elsa foi um design de bordado em forma de flocos de neve, que está em suas ombreiras, fazendo referência a uniformes militares e autoridade, e trazendo a neve, elemento símbolo de elsa, para onde quer que ela vá. o design aparece também em suas botas e até nos posteres do filme.
todas essas ideias são, posteriormente, passadas pruma equipe de estilistas que traduz as criações em roupas físicas pensando no consumidor final - meninas de 4 a 10 anos, normalmente, sem o poder aquisitivo da rainha elsa, vivendo em 2019 e usando os vestidos para ir à escola ou passear no fim de semana.
é claro que esse nível de detalhe nos figurinos de animação se alcança em grandes produções de estúdios como disney e pixar, o que não significa que produções menores, para tv, não se atentem à importância da roupa na criação dos personagens.

em bojack horseman os figurinos servem pra gente compreender um pouco mais sobre a fase da vida dos personagens que estamos acompanhando. eles não trocam de roupa com frequência, numa dinâmica meio turma da mônica em que cada um tem seu figurino estável. flashbacks nos mostram tempos diferentes em que os personagens usavam roupas diferentes, representando sua juventude, ou sua posição na carreira e aspirações, ou mudanças importantes na vida.
a designer de produção e criadora dos personagens e cenários, lisa hanawalt, disse sobre seu processo de desenvolvimento de figurino que o primeiro passo é sentar com a equipe e conversar sobre pessoas reais que são similares aos personagens - ou de quem eles querem que a audiência se lembre ao assistir. porque o desenho é uma sátira a hollywood, vários dos personagens são livremente inspirados em personalidades da indústria cinematográfica, e essas pessoas se tornam objeto de pesquisa para a criação dos figurinos.
hanawalt comenta que os figurinos não mudam constantemente como maneira de criar algo que a audiência reconheça facilmente, e dá o exemplo de simpsons em que todo mundo usa as mesmas roupas há 30 temporadas. ela pode estar correta, mas não há dúvida de que o cuidado oferecido aos figurinos de bojack horseman vai muito além de desenhos como simpsons, family guy, bob's burgers e outros para o público adulto.

as roupas dos protagonistas são pensadas e elaboradas a partir de diversas referências que hanawalt recorta e cola para criar looks únicos e representativos. a jaqueta verde da diane foi pensada para dar uma sensação de seriedade e inteligência, e a cor é usada outras vezes, sempre em personagens aos quais bojack devia escutar (spoiler: ele nunca escuta). a diane também faz referência a daria, personagem dos anos 90 conhecida por sua ironia, humor difícil e tendências antissociais. daria era uma adolescente, diane é tipo a versão adulta dela. diane é a única personagem que tem uma grande mudança em seu visual no decorrer das temporadas - na quinta temporada ela corta o cabelo pra sinalizar uma mudança em sua vida - o que é legal porque é algo ao qual muitas mulheres recorrem, um corte radical de cabelo pra acompanhar um novo momento (ou um desejo de mudança).
princess carolyn, agente de bojack horseman, usa no dia-a-dia um vestido com estampa de peixe - outra estratégia de lisa hanawalt é estampar as roupas dos personagens com algo que eles realmente gostam. princess carolyn é um gato, nada mais natural que goste de peixe e coisas estampadas com peixe, assim como mr. peanutbutter, um cachorro, tem um pijama estampado com ossos e o bojack, um cavalo, dorme com um pijama de maçãs e, na juventude, usava um pulôver também estampado com maçãs.

ainda que seu vestido de peixinhos seja sua marca registrada, princess carolyn é uma mulher envelhecendo numa indústria que dá preferência a mulheres jovens, então ela se apega a símbolos da juventude e, em ocasiões especiais, usa looks que celebridades da vida real, como katy perry e rihanna, usam. esse desejo da princess carolyn de ser cool, de ser parte da galera in, se mostra desde sua juventude - quando ela ainda era assistente, fase de sua vida que a gente conhece por flashbacks, ela usava todos os itens que eram tendência do momento, como as botas ugg e uma saia jeans com lavagem acid. essa é uma personagem que passou a vida inteira tentando se adequar a padrões de beleza e sucesso hollywoodianos.

para além do arco de personagens principais, os coadjuvantes também tem seus figurinos planejados com atenção. o figurino da popstar sextina aquafina é inspirado nos looks de azealia banks feitos por bradley callahan, da marca BCALLA. as moças da geração millennial que trabalham no site girlcroosh usam roupas estilosas e jovens que denotam confiança e estilo próprio. e hanawalt usou referências dos filmes do wes andersen pra criar o figurino de uma família rica, dessas tradicionais americanas com mansões no interior.

pequenas diferenças de gosto e preferência, especialmente nas roupas femininas, são retratados em detalhes quase imperceptíveis, mas que denotam conhecimento das diversas possibilidades existentes na moda feminina. um exemplo são as baleias das primeiras temporadas, que trabalham uniformizadas porém fazem questão de expressar gosto pessoal de pequenas maneiras, com variações em seus tops (que aparecem sem manga, com manga, de amarrar - e mesmo os de amarrar variam levemente entre si), seus sapatos e suas calcinhas de biquíni.
as diretoras da revista de moda manatee fair (uma brincadeira com vanity fair), são peixes-boi extremamente elegantes e fashionistas. lisa hanawalt usou looks de passarela, especialmente da prada, para desenhar as roupas delas, e diz que foi divertidíssimo vestir esses corpos completamente diferentes de modelos com roupas desfiladas por mulheres magérrimas na vida real. fica a dica pra indústria da moda: se até os desenhos animados tão fazendo roupa pra todo tipo de corpo, tá na hora das grifes também, né?

não é só no ramo da séries animadas para adultos que o figurino é profundamente planejado. adventure time, entre tantas outras qualidades, trabalha impecavelmente a questão do figurino e quão intimamente ele tá ligado à evolução do personagem. finn, o protagonista, não muda de figurino exatamente, mas tem diferentes cortes de cabelo ao longo da série e sofre modificações corporais conforme cresce, amadurece e aprende.

o garoto tem uma relação interessante com alguns de seus itens de vestuário, como os pulôveres que usa quando visita o reino gelado: na primeira temporada ele usa um pulôver amarelo, mas a partir da segunda ele é visto em alguns episódios com um pulôver rosa, que foi presente da princess bubblegum e se torna uma de suas coisas favoritas - além de quentinho e confortável, o pulôver carrega em si o "poder de gostar muito de alguém", característica que se mostra crucial em algumas das aventuras de finn.

seu gorro com orelhinhas de urso também é extremamente significativo - ele o usa sempre, e há episódios que demonstram que ele representa um apego e uma lembrança dos tempos anteriores à série, em que finn ainda vivia com seus pais e possuía um ursinho de pelúcia branco. há teorias que dizem que o gorro é o que restou do ursinho.
a princess bubblegum passa de usar só rosa e vestidos femininos nas primeiras temporadas a variar a paleta de cores, os caimentos e os modelos de roupa que usa, arriscando inclusive peças mais masculinas como macacões, e às vezes arrasando na elegância com terninhos bafo.

nas primeiras temporadas ela é uma pessoa muito ligada a sua posição de poder e nobreza, representada pelos vestidos clássicos de princesa na cor rosa, que simboliza seu reino. conforme o tempo passa, ela se afasta da ideia de ter poder completo sobre um reino como algo benéfico - muitos tem medo dela, algumas de suas decisões são realmente questionáveis e egoístas, e ela consegue identificar essas falhas de caráter como provindas do poder demasiado que ela tem. pouco a pouco bubblegum diversifica seu guarda-roupa, se vestindo cada vez menos como alguém nobre, até o momento em que ela realmente renuncia à coroa, fase em que seu estilo se torna muito variado, divertido e cheio de personalidade.

impossível deixar passar marceline, a melhor vampira do século XXI, toda trabalhada nos brancos, pretos e vermelhos mas às vezes supreendendo a gente com uns amarelos, uns azuis... às vezes até um pink? o vestido pink tenho certeza que ela pegou emprestado da bubblegum, sua melhor amiga, criadora de tensão sexual e crush.

há outras evidências de que bubblegum e marceline emprestam roupas uma pra outra e, provavelmente, tem uma relação bem íntima: um blusão colorido que é usado por uma ou por outra em diferentes episódios e a camiseta de rock da princess bubblegum, que foi presente de marceline e ela usa como pijama - às vezes até durante o dia por baixo de casacos - e pela qual tem muito carinho. há um episódio que deixa mais claro o valor sentimental da camiseta e o amor de bubblegum por marceline - após ter tido a blusa roubada e recuperada, bubblegum dá uma cheiradinha nela, que nem eu uma vez que me peguei inadvertidamente dando uma fungada numa blusa que o crush deixou em casa.

desenhos animado tem, naturalmente, uma atmosfera fantasiosa, e quem os assiste se deixa levar por desafios a leis da física, absurdos, piadas non-sense, acidentes graves que resultam em zero ferimentos, tudo pela suspensão da descrença que nos envolve na história. o figurino faz parte desse conjunto: ele nos ajuda a entender os personagens e o roteiro, e assim como em quase todo o resto, quando se trata de animação, toda roupa é possível. no fim das contas, não há razão nenhuma para deixar de fazer qualquer coisa desejada, não há limitações físicas nas animações. a única pergunta que criadores de figurino devem se fazer ao pensar na roupa de um personagem é: por que não?