melody erlea
mulher solteira procura: um suspense sobre amizades obsessivas e um alou às nostalgias 90s
[esse texto pode ter alguns spoilers de um filme de 1992, mas convenhamos, a gente pode sequer chamar de spoiler coisas que tão no trailer?]

eu tava na secura de um filme com luquinhos da hora, que fugisse da ~bolha netflix~ e que fosse um suspense meio no estilo de eu sei o que vocês fizeram no verão passado (lembra quando filmes podiam ter títulos gigantes porque nosso cérebro não tava derretido por causa da internet e conseguíamos ler uma frase do começo ao fim e compreendê-la em sua completude?).
não tava afim de esperar torrent baixar (e nem afim de iniciar a busca por esse filme sozinha nos vastos territórios da internet), então fui no netflix e comecei pesquisando por filmes da julia stiles até cair num limbo de cinema duvidável dos anos 90, e passeei por alguns cliques enquanto tentava decidir: 1 - correndo atrás - clássica comédia romântica adolescente 90tista com todos os clichês da menina invisível que vira linda, cujo melhor amigo nerd é apaixonado pela menina popular que é um monstro, só que essa é melhor porque é uma versão teen de cyrano de bergerac; 2 - scream - a versão nova da netflix em série, eca; 3 - lenda urbana, que eu poderia ter assistido considerando que minha referência era eu sei o que você fez, mas não quis; 4 -instinto selvagem, que eu cogitei assistir, porque pra ser bem honesta tenho na memória apenas flashes de cenas do filme, mas não lembro completamente.
nas sugestões de títulos semelhantes a instinto selvagem encontrei o quase-esquecido-porém-para-sempre-icônico mulher solteira procura, de 1992 (no original, single white female, ou mulher branca solteira - levemente racista, condizente com a mentalidade da época no sentido de que no universo do filme pessoas negras não existem, aparentemente, mas ainda assim há a necessidade social de especificar a protagonista como branca no anúncio de classificados que ela publica, ao qual o título do filme se refere).
o filme é a história dessa mina, allie, que mora num apartamento incrível em nova york, tem um cabelo fabuloso e um guarda-roupa do tipo que parece ser uma mistura de coisas garimpadas em brechós e achados de loja (não exatamente fast fashion porque estamos em 92, mas é um guarda-roupa estiloso de quem tem olho bom pra peças e preços em lojas comuns, do tipo boutiques de rua e lojas de shopping), bem noventista mas com um twist - aquilo que magicamente chamamos de estilo pessoal, só que ainda melhor porque pensado por uma figurinista pra funcionar perfeitamente na narrativa e nos dizer o suficiente sobe a personagem.

o que eu amo nos filmes dos anos 90 é que, embora a ideia de sucesso profissional e financeiro num formato padrão fosse bem acentuado, ainda assim de muitas maneiras era muito menos deslumbrado do que hoje em dia. prum filme ou uma série atual ter um figurino amado pela internet e comentado pelas blogueiras, normalmente tem que ter muito espetáculo nessas roupas. grifes finas, achados vintage inacessíveis pra quem não é produtora de moda em hollywood, itens que nunca se repetem, mesmo quando vestem apenas uma universitária estilosa.
é a síndrome de becky bloom dos anos 2000, enquanto na vida real mesmo a gente procura referências realistas, possíveis, interpretáveis. allie é assim, só roupa incrível, mas dá pra ver o cuidado da figurinista em criar um guarda-roupa verossímel: ela repete roupa, tem acessórios statement que transformam seus looks diários em uma coisa uniformizada, porém customizável (eu AMO os blazers presos com cinto marcando a cintura) e algumas peças super originais que dão o tom e a personalidade desse conjunto de roupas, tipo o trench coat azul-cintilante que eu queria MORRER pra ter. tudo isso é elemento importante da narrativa: a gente precisa entender que essa mulher aplicou um certo tempo e energia pra criar essa apresentação visual de si mesma, que o estilo dela não é encontrado pronto e empacotado numa arara de loja, que aquilo é uma combinação única de escolhas de consumo que representam como a allie quer ser vista.
e ela quer ser vista como moderna, estilosa, profissional e capaz. allie está ingressando na indústria da moda com um software que organiza o acervo, preços e vendas de lojistas, além de auxiliar com o design de estampas e peças. é no meio desse processo de tentar vender seu serviço a lojistas que ela termina com o namorado. fica foda bancar o apartamento incrível sozinha, afinal ela só APARENTA ser bem sucedida (ah, a magia das roupas!), então inicia-se a procura por uma roommate.

allie conhece hedy através de um ~pausa dramática pra você se preparar emocionalmente pra essa nostalgia~ anúncio nos classificados! do tipo em que que você publica suas informações pessoais no jornal pra todo mundo ver, aguarda telefonemas e espera que a pessoa que vá morar com você não seja um assassino. cê tá loko, nesse sentido pelo menos hoje em dia a internet ajuda a gente a saber um pouco mais sobre desconhecidos antes de tomar decisões tão grandes, né? (mas aí a gente lembra da série you e pensa que nem a internet pode nos salvar de psicopatas estranhamente apaixonantes).

[alguns spoilers nesse parágrafo]
a princípio hedy parece uma garota do interior comum, tímida e sem senso de estilo - mas na real a mulher é virada no giraia, com uma história muito louca de uma irmã gêmea que nasceu morta. fato é que hedy começa a meio que se transformar na allie???? doideira. primeiro é um cinto que "coincidentemente" as duas tem igual. aí percebemos o guarda-roupa de hedy evoluir - de saias midi largas e tricôs sem forma para blazers acinturados e saias mais curtas e justas - e mimetizar item-por-item o armário de sua colega de quarto. de repente ela me aparece com o mesmo cabelo ruivo cogumelo da protagonista e a gente fica tipo QQQQQ??? não é um penteado do tipo rachel-de-friends que todo mundo queria copiar. esse é um penteado feito pra mostrar autenticidade. bom, não no caso da hedy.

[spoiler]
filme vai filme vem a inquilina doida mata o cachorro, o vizinho e o noivo da allie, numa puta doideira que vale a pena ver pois:
[fim do spoiler]

luquinhos lindos, homens dos anos 90 com a cara lisinha (lembra quando barba não tava na moda?), telefones fixos sem bina (imagina atender o telefone sem sequer saber quem tá ligando? não consigo imaginar pesadelo pior) e um mundo sem internet onde, em seu tempo livre, as pessoas pintavam abajures, consertavam varandas e usavam kimonos em casa apenas porque era prazeroso fazer essas coisas, não porque iam postar no instagram.
até copiar obsessivamente uma pessoa estilosa me soa mais legal num mundo sem instagram, em que a gente faria isso por satisfação própria (por mais bizarra e inapropriada que seja essa satisfação). a internet estragou até nossa relação com ser poser? parece que sim.

ps: existe uma sequência de 2005, single white female: the psycho, que eu não assisti mas pelo que li é péssima (o que pra mim significa deliciosa, assistirei assim que possível), e uma terceria versão, chamada the roommate, de 2011, com a leighton meester (a blair waldorf de gossip girl) que eu comecei a ver mas desisti após 10 minutos, é ruim demais até para o meu pobre e duvidável gosto.
ps 2: o filme se passa quase completamente dentro do apartamento da allie, com algumas poucas saídas para a rua e muitas cenas dentro do prédio em que elas moram, ou seja, bem apropriado pra tempos de pandemia e isolamento social.