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  • Foto do escritormelody erlea

o coturno antifascista


rude boys - revista life, 1966-69

lembro nitidamente, até hoje, quando encontrei, sem querer, esse texto. eu tinha 13 pra 14 anos, então esse site aí é de, pelo menos, 2004. me surpreende que ele esteja online até hoje.


o texto é uma crônica desse rapaz que tá indo comemorar seu aniversário de 18 anos no armagedon, balada da rua augusta que já teve muitos outros nomes desde então. ele tá com seu coturno e seu visual dark quando é abordado por skinheads - do tipo neonazi - que perguntam se ele é gótico. ele responde que não, ao que é recebido, depois de um comentário homofóbico, com outra pergunta:


qual é a ideologia do seu coturno?


eu, pequena melzinha adolescente, recém fascinada pelo universo dark underground marginal punk alternativo - e com meu recém adquirido par de coturnos na av. tiradentes, pelo qual minha mãe pagou - achei esse texto uma dádiva dos céus. uma porta que me foi aberta a um clubinho secreto no qual eu tava tentando entrar, mas não sabia como.


desse texto partiu uma pesquisa extensa sobre coturnos nas contra-culturas e os significados das cores dos cadarços, que me apresentou a uma sorte de nomenclaturas e subgrupos como sharp, trad, hash, fash, bonehead, bootboys, skin reggae, street punk, anarco punk, crust punk, e as várias vertentes políticas que as acompanhavam: antifascistas, anarquistas, comunistas, antirracistas...

uma loucura pensar que li tudo isso num passado recente e agora tô aqui vivendo um mundo instagrammer em que todo mundo veste qualquer coisa e desveste símbolos e vestimentas de toda e qualquer ideologia - o que mais tem é coturno com cadarço de todas as cores, e eles podem até continuar significando certas coisas pra certos grupos, mas no mainstream significa que você é a blogueira com a mais colorida coleção de cadarços do instagram. ou que você gosta de roxo. ou que apoia a causa lgbt. ou que tava em liquidação na c&a.


mas lá em 2004, ah, como eu me achei vanguardista com meu coturno novo e tendo memorizado todos os signficados de todas as cores de cadarço.


demorou anos pra eu me aprofundar o suficiente nas motivações históricas e sociais desses grupos underground e entender que eu jamais seria um deles - eu seria, no máximo, uma aliada. eu seria uma indie, que é o que você vira quando você gosta de cultura alternativa e tem tendências anti-capitalistas mas é branca e de classe média.


em 2011 a folhateen publicou um pequeno artigo sobre os jovens skinheads de são paulo. o artigo menciona a tentativa dos skinheads antifascistas de desmistificar o estigma nazista que o visual - cabeça raspada, coturno, jaqueta com bottoms - havia adquirido. no fim das contas, a mensagem do texto é que skinheads - racistas ou não - são baderneiros, gostam de brigas e causar confusão. no fim do artigo, eles são - todos, independente de sua inclinação política - categorizados pelo tipo de crime que costumam cometer, e a duração das penas que podem cumprir.

rude boys - josef koudelka, 1974

a ideia de que os movimentos punk e skinhead são sinônimos de fuzuê não é recente, e nasceu de expressões genuínas, ainda que agressivas, de injustiça social e luta por melhorias. muito da cultura se inicia por causa da fusão, nos anos 50 e 60, de estéticas jamaicanas, como os rude boys - garotos de regiões periféricas e baixo poder aquisito que ouviam ska, expressavam seu descontentamento político agressivamente e desenvolveram um visual próprio - e os movimentos de jovens britanicos da classe trabalhadora, como os mods. é dessa mistura que sai aquela estética skinhead que a gente conhece, da cabeça raspada, coturnos, suspensórios...

mods - 1960s

nos anos 70 ideologias nacionalistas passam a se popularizar entre a classe operária branca do reino unido, fruto de instabilidade econômica e medo generalizado devido a falta de empregos, e se apropriam da estética da luta jovem dos punks, mods, skinheads, e rude boys. é nessa época que a imagem do skinhead neonazi se torna conhecida mundialmente, e a cabeça raspada e os coturnos passam a ser associados a esse posicionamento.


a questão é que, não muito tempo atrás, grupos com uma forte mensagem política se identificavam minuciosamente com símbolos da cabeça aos pés. então mesmo que a cabeça raspada ainda pudesse confundir as pessoas, detalhes como os cadarços no coturno avisavam: skinhead sim, neonazi não. outros elementos como bottons, mensagens nas roupas e patches também indicavam a inclinação política de cada subgrupo punk.


muitos desses símbolos perderam seu sentido no esquema maior das dinâmicas sociais - os cadarços no coturno, por exemplo, que podem até seguir codificando hierarquias e ideologias dentro de grupos pequenos e locais, mas não causam mais briga na estação consolação do metrô. e no fim das contas, um cadarço é um cadarço: não é uma ação política real.


e não é à toa que me peguei, bem hoje, lembrando dessa história do coturno dos meus 14 anos: olha o que eu achei num dos blogs onde, lá no começo dos anos 2000, li sobre sobre coturnos, cadarços, e subgrupos punk:

pega essa bandeirola no canto da imagem!


não parece muito com a imagem rodando os stories de todo mundo essa semana, em resposta aos recentes episódios de violência policial contra a comunidade negra e os ataques à democracia no nosso país?

pois, originalmente, essa é a bandeira da antifa, um grupo multipartidário e não organizado de ideologias de esquerda e contra o fascismo criado na alemanha. recentemente, trump declarou que o grupo antifa seria considerado um grupo terrorista - o que é complicado, porque basicamente qualquer um que se identifique com anti-fascismo e se organize em grupos políticos pode ser considerado parte do antifa.


não é à toa que a imagem tá sendo compartilhada por aí por todo mundo que vê atrocidade no que tá acontecendo: ela sinaliza uma espécie de resistência, um esforço em grupo como quem diz se eles forem, eu também vou, nos coloca todos juntos ao mesmo tempo que demonstra o absurdo de dizer que todos nós - tantas profissões, gêneros, crenças - somos terroristas.


há quem reclame da pouca fidelidade às cores e palavras originais da bandeira - que também tem significados, remetem a ideologias políticas e representam grupos específicos. há quem reclame que as pessoas compartilham a imagem sem realmente saber o que ela significa.


precisa significar alguma coisa além de estamos juntos, vidas negras importam, o fascismo, em todas as suas formas, não vai conseguir vencer a todos nós? assim como as cores dos cadarços nos coturnos pouco importam mais, a bandeira perde significados locais pra adquirir novos signficados, mais abrangentes, mais comprensíveis por um grupo maior de pessoas e, portanto, de muito maior alcance na era das redes sociais.


há quem diga que simplesmente publicar a imagem tem pouco efeito além de demarcar a pessoa que publica como do time "do bem". eu sou branca, mas sou uma das legais. é preciso se perguntar que ação estou tomando além dessa, o que posso fazer que seja real, como posso contribuir, me educar?


é preciso mais do que escolher a cor certa de cadarço, agora.

rude boy - revista life, 1966-69


o mês de junho no repete roupa vai ser dedicado à visibilidade negra e à luta antifascista. esse foi o primeiro post, pra introduzir o tema do mês e começar um diálogo. convoquei os repete-writers pra pensar em algo pra contribuir, mas vamos aprendendo conforme fazemos quais são as melhores maneiras e os melhores assuntos pra cumprir essa responsa.

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