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atwood, lessing, butler: a perspectiva feminina no sci-fi


eu sou uma ávida leitora de ficção científica desde que, por volta dos 10 anos, coloquei as mãos nos primeiros livros de ray bradbury que achei na estante dos meus pais - os frutos dourados do sol e f de foguete, duas coletâneas de contos do autor que, lá em 1997, rechearam minha imaginação infantil de ideias sobre pessoas, sobre o futuro, sobre o espaço e sobre alguma melancolia intrisecamente humana que aquelas histórias pareciam carregar.


esses livros - e depois outros que li, do isaac asimov, carl sagan e até a "não-ficção científica" de erich von daniken - não apenas me faziam sentir, e por vezes quase compreender, esse desalento que é ser um humano num planeta minúsculo no meio de um nada tão infinito. esses livros me faziam chegar mais perto de assimilar minha própria insignificância e a futilidade dos conflitos e regras de uma sociedade tão claramente fruto de conceitos inventados, nada universais. ler ficção científica me deixava ciente da solidão que é ser um ser vivo consciente nesse universo incompreensível.


quantas vezes não tentei imaginar meu pai, em seus 10 anos, também descobrindo esses autores e sua versão fantástica e melancólica da humanidade. eu tento imaginar o que era ser uma criança vivendo o contexto da corrida espacial ao mesmo tempo que lia esses livros - me pergunto quão frustrante é o presente pra quem imaginou um futuro com viagens intergalácticas e contato alienígena. se até eu, lá nos anos 90, bem longe do frisson da conquista espacial, já conseguia sentir algo excitante à espera da humanidade ao ler bradbury e asimov, imagina na década de 60 - uma época em que o imaginário cultural estava transbordando com ideias de naves e homens do espaço, a ponto de influenciar hits musicais de david bowie e elton john, ao mesmo tempo em que tv noticiava naves com animais e humanos chegando à órbita da terra.


foi também na estante dos meus pais que encontrei doris lessing, com uma das melhores obras de ficção científica que eu já li, shikasta - que me abriu o universo de um sci-fi diferente, menos racional e masculino, mais espiritual, metafísico e holístico. foi com doris lessing e shikasta que eu entendi que nem só de tecnologias imaginárias e futuros fantásticos vive a ficção cientifica. o passado também faz parte do universo do sci-fi, e a própria ideia de tempo é relativa e maleável o suficiente pra que passado, presente e futuro sejam interconectados, simultâneos, influenciados um pelos outros.


eu já havia lido histórias de viagem no tempo - mas foi com shikasta que minha noção de tempo na ficção se esticou, aumentou, se tornou mais compreensiva. enquanto nas viagens do tempo de h.g. wells, bradbury e asimov o tempo era uma linha pela qual se caminhava para frente ou para trás, para doris lessing o passado e o futuro eram circulares e comportamentais, se repetindo eternamente em ciclos regidos por eras galáticas.


a ideia de tempo distorcido se reencontrou comigo anos depois, quando li meu primeiro livro de margaret atwood, the handmaid's tale - que se passa num futuro não muito distante, mas num país fictício governado por extremistas religiosos, em que se vive como no passado. não fossem os flashbacks da protagonista, que contextualizam a história numa contemporaneidade familiar, seria impossível inferir que a história acontece, realmente, no futuro.


tá certo que handmaid's tale é mais uma ficção distópica do que científica, mas mesmo na nategoria de distopias - eu nunca tinha lido sobre uma sociedade distópica tão despida de apetrechos fantásticos e tecnológicos, tão pouco futurista, tão voltada pras possibilidades com as quais como sociedade nós éramos familiares. margaret atwood me fez entender que o passado é tão misterioso e extraordinário quanto o futuro.


além dessa manipulação temporal diferente, eu sentia em atwood e lessing uma mensagem nas entrelinhas que não parecia estar presente nos autores homens do gênero literário (pelo menos não nos que eu tinha lido até então; hoje temos ted chiang, um dos meus favoritos atuais, numa nova geração de sci-fi que desafia as fórmulas masculinas do gênero). para além da melancolia humana frente a um universo infinito e desconhecido, doris e margaret traziam a ficção científica pra um patamar muito mais próximo e, por vezes, incômodo: a opressão humana dentro dos limites do nosso próprio planeta.


mais do que oferecer uma perspectiva menos narcisista da humanidade perante o firmamento estelar, elas nos lembravam, antes de tudo, que toda a humanidade é insignificante no contexto do universo - mas algumas pessoas são mais insignificantes que outras. enquanto os autores masculinos propunham uma humanidade igualmente perdida quanto às respostas fundamentais da razão de nossa existência, doris e margaret me lembravam que a humanidade estava perdida, sim, mas jamais de maneira igualitária.


de certo modo, me parece que tanto atwood quanto lessing estavam continuando uma tradição temática que tinha começado lá atrás, com mary shelley e o livro que inaugurou o gênero de ficção científica, frankestein - que é muito mais sobre a inaptitude masculina frente a suas próprias expectativas do que significa ser, criar e cuidar de um homem e sobre o tratamento que uns recebem em comparação com outros, do que sobre as possibilidades tecnológicas de se criar vida humana do zero com auxílio de eletricidade.


acompanhada desde cedo de shelley, atwood e lessing, eu nunca senti o gênero da ficção científica como um clubinho masculino, mas sempre senti uma diferença clara nas perspectivas masculinas e femininas dessas histórias.


para além de tudo, me parece que as autoras mulheres se permitem passear por violências e imagens que os homens cuidadosamente mantém fora de suas histórias. penso aqui na clara violência de gênero em handmaid's tale - e depois, quando li, também de atwood, a trilogia year of the flood, na violência de classe e de gênero que permeia a violência maior da trama, à qual os grandes conglomerados corporativos sujeitam os cidadãos daquela sociedade. também penso em doris lessing e na descrição fidedigna da história do planeta terra e suas guerras, ganâncias e ambições violentas em shikasta. penso em mary shelley e na violência de um pai para com seu filho imperfeito e despreparado para o mundo.


e isso tudo quando eu sequer havia lido octavia butler.


meu primeiro contato com butler foi há alguns anos, quando li o conto bloodchild - em que parte da raça humana conseguiu exílio em outro planeta, mas a um custo tão violento que é difícil imaginar o ser humano - por si só tão territorial e agressivo - permitindo aquela situação. fica nas entrelinhas da passivo-agressividade entre os humanos e os seres inteligentes que já habitavam o planeta que qualquer outra alternativa seria pior, e que aquelas pessoas aprenderam na marra a respeitarem a hierarquia das espécies.


mas nem mesmo bloodchild podia me preparar pro que octava butler tinha reservado pra mim em kindred, seu livro mais famoso.


kindred escapa a todas as regras e clichês comuns à ficção científica. não há nenhum tipo de tecnologia avançada, a história não se passa no futuro ou em outro planeta, não se trata de uma sociedade distópica e não há nenhuma explicação ou razão pros eventos fantásticos que acontecem com a protagonista dana, uma escritora nos anos 1970 que acabou de ir morar junto com seu parceiro, kevin, que também é escritor.


já nas primeiras páginas, quando sequer conhecemos os personagens direito, dana é repentinamente sugada de sua sala de estar para a beira de um lago onde um menino ruivo está se afogando. essa é a primeira de algumas viagens que a protagonista fará para resgatar o mesmo rapaz da morte, em diferentes momentos de sua vida. a pegadinha é a seguinte: o menino é o filho de um dono de escravos em uma plantation em maryland em 1810. e dana é uma mulher negra.


aos poucos dana compreende seu destino: o rapaz que ela resgata vez após outra, rufus, é um de seus antepassados. e ela precisa mantê-lo vivo por tempo o suficiente para que ele engravide a escrava alice e garanta sua linhagem e exitência.


kindred é uma ficção histórica mais do que científica, mas assim como eu já havia visto em atwood e lessing, há uma manipulação do conceito de tempo interessante e diferente - o que motiva as viagens temporais de dana estão além de seu poder de decisão, e ela nunca controla quanto tempo ficará presa no passado a cada vez. o presente parece imóvel - ela sempre retorna pro mesmo ponto no presente, de maneira que mesmo que ela fique meses presa em 1810, pouco ou nenhum tempo se passou em seu tempo presente.


o tempo em kindred é quase um personagem, o criador dos conflitos que fazem a história ir pra frente. ele se apresenta no deslocamento temporal da protagonista, e não parece se ater a nenhuma lógica ou padrão. ele deixa suas marcas: dana volta pro presente com mais rugas, aparência mais velha e cansada, e, principalmente, as cicatrizes, hematomas e deformações que o passado lhe aflige. as violências coloniais das relações senhor e escravos ultrapassam os séculos e acompanham dana de volta à sua vida, um lembrete pessoal na pele daquela mulher de que é impossível - para uma pessoa e para uma nação - passar por um período daquele e sair dele ileso, inteiro, incólume.


eu comecei o livro e pensei em desistir, despreparada pro tipo de horror que eu imaginava poder acontecer nua história em que uma mulher negra moderna se encontra, sem saber como, numa plantation. mas octavia butler consegue trazer humanidade até pro senhor de escravos mais tenebroso, mais participante de seu próprio zeitgeist, mais conformado com a normalidade daquela situação. ela também explicita a humanidade das pessoas escravizadas com quem passa a se relacionar, as tira da posição de submissão pura e as coloca numa dinâmica complexa de poder, relações pessoais, e histórias familiares.


há violência, sim, de gênero, de raça, abuso verbal e punição corporal, estupro, suicídio, amputação - e quando é tudo listado assim parece absurdo e desnecessário mas também há poesia ali no meio, vontade de viver (e não só sobreviver), compreensão para com a própria história daquela nação e daquelas pessoas, lembranças necessárias que são facilmente esquecidas, e a sensação clara, ao terminar o livro, de que presente e passado se influenciam muito mais do que gostamos de admitir.


(gosto particularmente de ficção científica que não é obcecada pelo século XX no planeta terra. asimov parecia pensar que o século XX era o auge do conhecimento, sociedade e tecnologia, doris lessing também taca uma importância fortíssima no século XX como o fim de tudo, até a ursula le guin e seu the dispossessed - que se passa em outro sistema solar em outra galáxia centenas de eras no futuro - dá um jeito de trazer o século XX terrestre pra história. kindred é um respiro nesse sentido - embora o século XIX seja assustado em muitos sentidos, é um alívio ler uma autora que entende que outros séculos são igualmente importantes no tecer da nossa história como humanidade).

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