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símbolo anárquico e amuleto em tempos de pandemia: a máscara

Que loucura! Mercados e estabelecimentos em cujas portas estão afixadas placas que dizem "Proibido entrar de capacete ou qualquer cobertura que oculte a face" estão substituindo a lei estadual paulistana de 2013 por uma nova medida, em vigor na cidade de São Paulo desde o dia 7 de maio: a obrigatoriedade da máscara.

É surreal: uma sociedade que cresceu com preceitos de vigilância que remetem ao romance distópico de George Orwell, 1984 - com câmeras em todos os lugares e um grande medo de rostos ocultados e pessoas anônimas - de repente aceitando a máscara como elemento essencial da nossa convivência.


A máscara, que estamos usando quando saímos de casa como ferramenta de diminuição de contágio pelo Covid 19, esconde nossa principal ferramenta de sociabilização, o sorriso. Já há sugestões nas redes sociais sobre como demonstrar gentileza e educação enquanto estivermos de máscara. Pode parecer óbvio para alguns, mas a verdade é que é muito mais difícil expressar simpatia apenas com nossa voz e olhar, e é mais fácil ter a impressão de grosseria ou frieza quando não vemos nosso interlocutor sorrir. Como interpretar as dicas da linguagem não-verbal quando parte de nossa cara está encondida?


Precisamos sorrir uns pros outros sim, pra que nossas relações breves sejam agradáveis e educadas. Mas impossível não lembrar que, especialmente quando se trata do rosto feminino, o sorriso é um elemento decorativo. Ele nos torna mais belas, por nos deixa mais acessíveis e convidativas. Quantas vezes não ouvimos que uma mulher sorrindo é uma mulher bonita? O sorriso suaviza o rosto, e é isso que se espera, muitas vezes, das mulheres. Que se sorria porque o sorriso embeleza o rosto e nosso é embelezar.

Beleza aumenta a moral, deixa as pessoas felizes, e essa tarefa sempre recai sobre as mulheres. Na 2ª guerra mundial Winston Churchill defendeu o batom como item essencial. As razões: batons e cosméticos são o jeito mais barato e simples de uma mulher se enfeitar. Em tempos de guerra, com racionamento de tecido e a impossibilidade de se vestir com roupas novas, o batom é a saída pra que as mulheres sigam arrumadas.


“Agora, mais do que nunca, a beleza é seu dever”, declarava a Vogue em 1941, oficializando o papel primordial da mulher de adornar o ambiente. Em meio a guerra, calamidade, pandemia, e medo, a beleza da mulher precisa seguir inabalável, confortante, apaziguadora.


É claro que devemos nos apossar de todas as ferramentas possíveis para nos sentirmos bem, adequadas, fortes e competentes em períodos de crise, e para muitas mulheres uma dessas ferramentas é maquiagem. Mas no contexto histórico-social, a maquiagem é nos vendida como item essencial - mesmo em épocas relativamente normais - não para que nós sejamos donas de nossas belezas, mas sim pra que o resto da sociedade, principalmente o olhar masculino, nos veja como belas.


A maquiagem nos é oferecida como um meio de alcançarmos a beleza que é esperada de nós, e não necessariamente a beleza que queremos criar. Que mulheres e homens sejam capazes de subverter isso e tomar posse do protagonismo do uso de maquiagem é maravilhoso, mas não nos desvia completamente do conceito de mulher como adorno.


O uso da máscara subverte completamente essa ideia. Em tempos de pandemia, nem a beleza da mulher serve pra animar a moral da sociedade - porque ela está escondida atrás de uma máscara. As roupas bonitas, os sapatos de salto, os acessórios? Todos guardados, porque estamos em casa - e os que não estão, não saem para rua com aquela vontade de encantar o mundo com beleza. Não saem para rua com vontade nem de sair para rua, que dirá de se arrumar.

Nem o mundo estéril e longínquo do Instagram escapou: as blogueiras de lifestyle, que vendem beleza, corpos, maquiagens e roupas estão sendo minuciosamente assistidas e criticadas. Não é hora pra futilidades - nem Churchill conseguiria convencer a gente, nesse momento da vida, que batom é item essencial.


Não há propaganda que nos convença, agora, a comprar cacareco fashion, e não há rosto à mostra pra expor nossas inseguranças e nos convencer a pintá-las e camuflá-las.


Somos todos pedaços de pano, agora.


Somos todos anônimos, nem feios nem belos, sorrisos cobertos.


A máscara é um símbolo anárquico: ela esconde qualquer performance social que nossos rostos inadvertidamente expressam. Por baixo de uma máscara pode haver qualquer coisa - e é por isso que, mascarados, podemos ser quem quisermos. Não é à toa que super heróis mascarados fascinam nosso imaginário.


O escritor nigeriano Chinua Achebe, em seu romance Things Fall Apart descreve uma cena em que homens importantes de Umuofia, a vila onde a história se passa, saem de uma casa secreta onde só homens entram, todos mascarados. Com aquelas máscaras, eles deixam de ser homens e passam a ser espíritos e divindade nigerianas, os Egwugwu. Eles se colocam em frente ao habitantes da comunidade para resolver conflitos familiares, questões de furto, acerto de contas e dívidas - funcionam como juízes, cuja autoridade é estabelecida pelos deuses que os incorporam. Dessa maneira, a decisão final de resolução é tomada pelo espírito que habita o corpo mascarado, e não pelo homem que usa a máscara. Isso ao mesmo tempo protege o homem de recriminações e sanciona a decisão, cuja responsabilidade é assumida pela entidade que a máscara representa.

gwilym iwan jones

Quando a vila é invadida por homens brancos cristãos, uma dessas reuniões do Egwugwu está ocorrendo. Um dos rapazes mascarados atinge um homem branco com um pedaço de pau, e ele arranca sua máscara num gesto de ódio. Para os habitantes de Umuofia, quando um Egwugwu tem sua máscara arrancada, aquele espírito morre.


A entidade só existe enquanto aquela máscara é vestida. O gesto do homem cristão expressa não apenas o pouco interesse cultural - e o pouco respeito - dos colonizadores, mas também carrega uma mensagem simbólica: máscaras religiosas que são desvestidas, à força, para que outra seja, também forçadamente, construída e ensinada.


Não era só nas comunidades da Nigéria que a máscara possuía esse papel de ponte entre o mundo material e espiritual. A característica principal - esconder e revelar identidades - está presente em basicamente qualquer máscara da história da humanidade. Os rituais de fazer e vestir uma máscara costumam ser altamente simbológicos - em muitas culturas acredita-se que o artesão da máscara está em contato muito próximo com o espírito que a habitará, e molda a aparência do acessório de acordo com as energias que recebe.

henning cristoph

As máscaras da sociedade eurocêntrica e católica aparecem de outras formas: nas nossas roupas, que sinalizam nosso gênero, nosso poder aquisitivo,o nossos gostos. Na maquiagem, que, normativamente, aceitamos usar se do gênero feminino, e descartamos se do gênero masculino. Os sapatos que usamos, que demonstram quão dispostas estamos a nos submeter a métodos doloridos para cumprir papéis de beleza e elegância. Nas gravatas e sapatos sociais, que retratam o homem empregado das 9h às 18h, conivente com o sistema corporativo.


O psicólogo e neurocientista da Universidade de Princeton, Alexander Toderov, afirma que o ser humano é expert em interpretar rostos. Desenvolvemos essa habilidade constantemente, ao longo da nossa vida. Toderov trabalha numa pesquisa que demonstrou que em menos de 100 milisegundos formamos julgamentos sobre o caráter, as emoções e as atitudes de alguém - só pelo que enxergamos em sua face. Nosso rosto é uma máscara: sinalizam quem somos no esquema social em que estamos estabelecidos, cria nossa identidade, nos distingue e nos encaixa em grupos, subgrupos, classes.


Ao cobrirmos nosso rosto, mesmo que por recomendação dos órgãos de saúde, estamos também, de alguma maneira, subvertendo a ordem social dos rostos à mostra e nos rendendo ao anonimato de uma outra máscara, física.

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As máscaras sociais não se resumem ao rosto. Quando Billie Eilish usa roupas largas, sem forma, à parte das tendências de moda e das expectativas pro corpo feminino, ela tá usando uma máscara. Ao esconder seu corpo, ela se retira da performance de gênero que associa nosso sucesso ao nosso corpo. Ela subverte o que é esperado de uma jovem mulher e muda sua narrativa na dinâmica social.


Máscaras escondem nossa identidade social e nos dão liberdade pra resgatar desejos e personas diversas, para além de identidades de gênero e classe social. Máscaras, mesmo quando usadas para proteção médica, podem ser customizadas e conter mensagens.


No caso do Covid 19, funcionam como um talismã: estamos frente-a-frente com um inimigo invísivel, e para a maioria de nós não há maneiras de combatê-lo ativamente. Usar a máscara significa algum tipo de ação - para além de ficar em casa lidando com nossa ansiedade.

Mais importante: usar a máscara atualmente é um sinal de empatia e solidariedade comunitária. As mensagens das máscaras e as identidades por trás delas podem ser muitas, mas uma é clara e constante: ao usar uma máscara as pessoas dizem, em silêncio, "eu cuido de você e você cuida de mim". É uma atitude pelo bem do outro, primariamente, não pelo nosso próprio bem, e portanto é uma ação pela comunidade.


Que precisemos de uma ferramente que nos torne anônimos e indistinguíveis para que tenhamos uma atitude pelo bem comunitário e não pelo nosso próprio bem é curioso, mas compreensível. Uma máscara que esconde nossas diferenças sociais acaba escancarando o óbvio: no grande esquema da universo, somos todos iguais, e não há máscara social de riqueza, classe, gênero ou escolhas políticas que nos resguarde de doenças, catástrofes ou do incrível poder da natureza.


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