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sobre educação, moda e os perrengues das duas áreas

(mega textão à vista, mas a elle woods tá aqui pra te dar força do começo ao fim)

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outro dia uma amiga comentou que desperdício de potencial humano é o sistema de trabalho e educação atual, que afasta profissionais de áreas diferentes exigindo especializações cada vez mais minuciosas numa coisa só, ao invés de promover interação, troca de conhecimento, vontade de aprender coisas diferentes e trazer perspectivas diversas pra dentro da nossa própria área.

a moda pra mim tem sido um caminho difícil, porque sou formada em letras, não na área de moda, e minha maior experiência é em sala de aula. mesmo que eu seja pós-graduada em moda e comunicação, saiba escrever e tenha um ponto de vista, entenda e consiga prever tendências, tenha bom repertório cultural, fale línguas, o mundo da moda não me quer. porque minha formação é em letras e porque eu não conheço as pessoas certas.

já em educação, escolas não me querem porque apesar dos meus 12 anos de experiência, diversos cursos de formação nas instituições onde trabalhei, certificação em inglês e pós graduação, não tenho especialização na área de educação. porque o que eles querem é gente bitolada que só saiba de uma coisa que só queira estudar uma coisa que só entenda e se interesse por uma coisa. meu interesse por moda, cultura, comunicação, escrita, mídias sociais, cultura pop não significa nada no mundo da educação. minha especialização em cultura, comunicação e moda não tem valor pras escolas, porque não é sobre ensinar língua.

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o que acontece é que a gente fica preso numa carreira que em muitos sentidos remete àquela famosa cena do chaplin: a gente repetindo o mesmo movimento, fazendo a mesma coisa, estudando um único assunto, sem conseguir se movimentar pelas diversas áreas do conhecimento humano, presos a um formato de trabalho, pra todo sempre amém.

eu sinto que tudo que aprendi estudando letras, linguagem, semiótica, semiologia, morfologia se aplica à moda. se estamos falando de uma linguagem, não importa se ela é visual ou escrita, o que importa é saber compreendê-la: tanto numa frase escrita quanto numa foto, o importante é passar sua mensagem adiante. e quando a gente aprende a analisar uma mensagem - seja ela uma poesia, um romance, um comercial de TV - é possível aplicar as mesmas estratégias a qualquer tipo de mensagem. isso tudo eu aprendi numa matéria chatíssima chamada teoria do texto - e apesar de tê-la achado chata na época, hoje vejo como cursar essa matéria me permitiu desenvolver habilidades que atualmente me ajudam com moda. saber ler e interpretar textos também me ajuda na área de moda: me permite interpretar textos sartorialistas, construídos com peças de roupas. me permite interpretar pessoas, mulheres, e ajudá-las a transmitir a mensagem que elas querem com seu vestuário. me permite leitura crítica de artigos de moda que são escritos com o intuito de vender alguma coisa, e não de nos informar de alguma coisa.

já recebi alguns emails e mensagens de gente me perguntando sobre mudar de área, principalmente de mulheres cansadas da vida na área administrativa que querem vir pra educação. costumo dizer que é uma transição maravilhosa, mas que a educação também seus reveses.

é muito frustrante trabalhar numa área em que exigem que nós tenhamos graduação, licenciatura, cursos de especialização, experiência em sala de aula e, no caso de quem, como eu, dá aula de inglês, certificação em língua estrangeira e de preferência duas graduações (letras E pedagogia, já que a grande tendência na educação é o tal do bilinguismo, e isso tem que acontecer desde a educação infantil, cujos profissionais precisam ter pedagogia. mas a grande maioria dos formados em pedagogia não fala inglês - quem fala inglês são os formados em letras. ou seja, toda uma bagunça acadêmica aí). eu nem me importaria com nada disso, significa que eu tive oportunidade e privilégio de estudar para muito além do primeiro grau, mas a frustração vem do seguinte: uma escola padrão bilíngue (não as já consagradas e tradicionais) quer que seus professores sejam capacitados nesse nível e oferecem de 1500 a 3000 reais por 30 a 40 horas de aula semanais.

pra poder dar uma hora de aula, um professor tem que planejar tudo: o que vai dizer, que material vai usar, como vai checar a compreensão dos alunos, que dúvidas os alunos poderão ter e como respondê-las satisfatoriamente, atividades de avaliação, como isso será cobrado em uma prova, qual é o objetivo de ensinar o que tem que ser ensinado e como você vai ajudar os alunos que você sabe que terão dificuldade - porque tem que conhecer os alunos também, todos os 30 de cada uma das turmas, saber como aprendem e o que acham difícil. pra cada hora de aula dá pra considerar até o dobro de tempo de preparo.

é um desgaste tão grande saber que tanto é exigido mas tão pouco é valorizado. não quero entrar no mérito dos alunos, de indisciplina em sala de aula, dos buracos em conhecimento básico que alunos do 7º a 9º ano carregam desde o fundamental 1. quero falar da área como mercado de trabalho: da incoerência que é exigir tanto estudo, preparo e atualização de um profissional e querer pagar tão pouco por isso.

quando ainda estava na faculdade, dava aulas em cursos de idiomas. passei por ccaa, wall street institute, wise up, red balloon e cultura inglesa. lembro de odiar tudo: a rotina, mesmo que fosse razoavelmente flexível, o preparo das aulas, as metodologias, repetir aquelas aulas vezes incontáveis, a padronização do ensino.... não curtia. mas durante alguns anos da faculdade, o não curtir meu emprego não era tão ruim. naquele tempo a impressão que eu tinha era de que eu tava fazendo uns bicos, me virando, dando um jeito de ter minha grana pra poder curtir minha vida nas horas vagas. e dava certo, e por um tempo meio que foi assim.

não me parecia que eu estava me comprometendo a uma carreira pelo resto da minha vida.

por isso, quando comecei a tentar trabalhar com moda, fiquei tão surpresa pela dificuldade. eu não achei que alguns anos trabalhando como professora iam dificultar minha entrada na moda - soava óbvio pra mim que isso devia me ajudar: eu não quero ser estilista, quero escrever. não quero ser criadora de estampas, quero dar consultoria de imagem. pra mim a imagem pessoal é um texto, e se tem algo que eu sei fazer bem é ler. e escrever. a faculdade de letras e minha carreira como professora deviam ser uma evidência disso - não um obstáculo.

durante meus últimos anos na cultura inglesa, cursando a pós, eu sentia que minha vida tinha entrado num buraco negro, em que eu trabalhava numa empresa que exigia de mim todo meu tempo hábil, sem conseguir fazer nada além de dormir nas minhas horas vagas, e triste com as escolhas que eu tinha feito: estudar letras, começar com as primeiras aulas em escola de idiomas.... eu queria que a pós em moda mudasse minha vida, porque o que eu achava é que eu tinha desenvolvido desgosto total pela área de educação. não queria mais nem pensar em ser professora, queria escrever sobre moda, conhecer gente legal, me vestir como eu quisesse. que clichê as projeções que a gente faz quando nossa vida tá uma merda, né.

consegui dois empregos pra poder sair da cultura inglesa: um deles na escola onde ainda trabalho, dando aula pra ensino fundamental 2. o outro foi o que considerei na época uma sorte grande: fui contratada pra uma vaga temporária não-remunerada pra cobrir uma estagiária entrando de férias (a estagiária era remunerada). era pra ser redatora num site de uma jornalista de moda consagrada aqui pelas terrinhas brasucas, e topei na hora.

aprendi à beça? sim. amei a experiência? sim. conheci pessoas incríveis? sim.

mas quando saí de lá, estava me sentindo como na cultura inglesa: da mesma maneira que pensei que educação tinha que sair da minha vida, senti que moda também era um ambiente terrível pra se trabalhar. percebem a metonímia aí?

eu sei que me prontifiquei a trabalhar de graça, e não troco a experiência, acho que foi valiosa - se por nada mais, me ajudou a entender os mecanismos das redações digitais de moda, de como se escreve, sobre o que se escreve, como funciona a spfw e o minas trend, da rotina, de cobrir eventos.... enfim. mas me incomoda ter feito isso para um site que leva o nome de outra pessoa. não tem autoria, não posso provar que eu escrevi os textos que escrevi, quem assina é a jornalista que nomeia o site, e vejam bem, ela ia à redação uma vez por semana. não sei dizer se na história do site ela escreveu algum dos posts.

durante a spfw, eles contrataram uma grupo de meninas como equipe de apoio - todas não remuneradas. assim como eu, elas tomaram a iniciativa e demonstraram interesse em trabalhar de graça, e fizeram isso para ter a oportunidade de trabalhar com a tal da jornalista, pra poder começar a montar um portfólio com nomes importantes. sabe quantas vezes a dona do site entrou na sala de imprensa pra falar com a equipe? uma vez. sabe o que ela fez com a equipe de apoio? nada. não cumprimentou, não se apresentou, não perguntou o nome de ninguém e não agradeceu pelo trabalho que estavam fazendo - de graça - para o site dela.

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na spfw fui encarregada de umas pautas nos corredores do evento, e pra uma delas tentei entrevistar um estilista estrelinha, que avistei na praça de alimentação gourmet. ele batia cabelo e seu caftan fashion pra lá e pra cá, mandava beijo e abraçava quem eu acredito fossem pessoas queridas e as diversas vezes em que eu disse seu nome ele glamurosamente rodopiou pro outro lado, me deu as costas e cumprimentou alguém mais relevante que eu. não consegui nem dizer "por favor, é pra jornalista-tal, ela mandou um beijo" ou algo do gênero pra chamar a atenção. 

o que aprendi, como aprendi após sair da cultura inglesa e começar a dar aula onde estou agora, é que não era a área que eu odiava, e sim o ambiente específico no qual eu estava. eu ainda amo moda e roupa, como amo literatura e inglês, e posso trabalhar nessas áreas, sim, ao mesmo tempo, e do meu jeito e onde eu quiser. eu tenho esse privilégio. eu não preciso me submeter a esnobismos e a remuneração indecente. 

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a lucinda chambers, ex-diretora da vogue, escreveu sobre ter sido demitida da revista, sobre as dinâmicas de relacionamento e trabalho na área, sobre os talentos desperdiçados por puro esnobismo, sobre se submeter a caprichos de anna wintour. em algum momento ela diz que a moda é reacionária e cíclica, e ninguém se mantem relevante por muito tempo. sinto que aqui no brasil essas relações de moda, especialmente no jornalismo e na crítica, funcionam bem como nossa política: ninguém traz nada de novo, ninguém merece mais estar ali, mas ninguém sai de seu lugar por meio de muita politicagem, de não falar mal de ninguém, de escrever sempre pra agradar e pra atrair patrocínio e de manter quem está fora com essa impressão de que aquele círculo de pessoas é de alguma maneira especial. porque tem todo um teatro maravilhoso rolando, e ninguém ali quer ser o personagem que morre e sai de cena.

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na área de educação, querem que sejamos úteis e talentosos sem nos recompensar de maneira proporcional. na moda, há uma ostentação de recompensas e tesouros, sem que se discuta a utilidade daquilo tudo.

toda área de trabalho é de um jeito ou de outro difícil, tem seus perrengues e a gente tem que sempre dar duro. mas seria maravilhoso se tivéssemos a oportunidade de diversificar mais nossas experiências, e que fosse mais fácil mostrar que competências são úteis em áreas diferentes, pra que pudéssemos variar mais, entender que nem sempre a grama do vizinho é mais verde, e conseguirmos enxergar melhor nossas habilidades, gostos e qualidades e encontrar ambientes ou maneiras de trabalhar que nos ajudem a potencializar essas características. menos ostentação, mais reconhecer trabalhos realizados em equipe. menos exigir formações minuciosamente específicas da área, mais dar oportunidades a gente talentosa que quer mostrar o que pode fazer. saca?

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pra ler mais sobre as maravilhas e os perrengues de ser professora, recomendo muitíssimo a leitura dos arquivos do blog filosofinhas, da julia porto. pra ler mais sobre o jornalismo de moda e suas dinâmicas, recomendo a carta aberta de lucinda chambers sobre ter sido demitida da vogue (em inglês) e o texto de jorge wakabara pra baiacu, uma catarse sobre o novo jornalismo de moda (em português).

Quem vai fazer o novo jornalismo de moda, que percebe e se arrepende de ter feito pactos com a indústria e sistemas, e esqueceu do mais importante? O leitor.

Ele, que talvez não queira ser consumidor, não tenha menos de 68 kg e ainda assim goste de moda. De que moda que ele gosta mesmo, que eu nem lembro mais? E quem vai escrever pra ele?

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