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  • Foto do escritorGisele Tronquini

Vestido de morangos, cottagecore e o novo fugere urbem


Se você, assim como eu é idosa veterana de redes sociais, talvez só agora tenha ouvido falar do vestido de morangos que inundou o tiktok e o instagram, rendeu vários memes e um post de protesto da modelo Tess Hollyday. Aparentemente é só um momento fugaz na internet, mas acho que ele pode dizer muito do que podemos esperar da moda pós pandemia.


Desde o ano passado começaram a surgir várias influencers de cottagecore, uma estética bem familiar para quem frequenta o tumblr e o pinterest: muitas plantas, tons terrosos, musgo e uma vida simples no campo. Tudo isso se expandindo em microestéticas relacionadas como goblincore, faeriecore, grandmacore e farmcore.


uma cabana na floresta, com plantas bem grandes na frente e coberta de hera
goblincore: a sensação é se sentir um hobbit
cozinha da vovó: o essencial é a presença de gatinhos

Talvez isso ficasse restrito à internet, mas aí veio a pandemia e o escapismo ganhou seu corpo em um vestido rosa, de babados com moranguinhos bordados. O vestido foi criado pela estilista de Nova York Lirika Matoshi, que tem uma marca indie relativamente pequena, em julho de 2019. Em janeiro desse ano a modelo Tess Hollyday usou uma versão no Grammy, e logo em seguida ele se espalhou pela internet como fogo. A estilista contou ao NYTimes que esperava uma queda nas vendas com a pandemia, já que as pessoas não estavam saindo de casa, mas se surpreendeu com a demanda.


A modelo plus size Tess Holliday usando o vestido de morangos junto com um sapato vermelho peep toe
A modelo Tess Holliday no Grammy 2020

Mas qual o rolê do vestido?


Quase todas as pessoas que compraram o vestido e deram seus depoimentos foram unânimes ao dizer que se sentiam como princesas Disney, fadas, como um dia de piquenique no campo. Para nós que somos um pouco mais velhas pode parecer meio bobo, e francamente, dificilmente eu vejo alguém no Brasil se vestindo assim. Mas eu acredito que tudo isso venha de um lugar mais profundo.


Isabelle Chaput e Nelson Tiberghien, do @young_emperors vivendo o sonho no campo

O mundo ao redor está ardendo. Literalmente no nosso caso, que estamos vendo a Amazônia e o Pantanal pegarem fogo todos os dias nas redes, respiramos sua fumaça e sentamos encarando impotentes o celular. As pessoas que estão fazendo 18/20 anos agora começam suas vidas adultas sem saber se existe futuro. No Brasil então, sequer temos emprego, que dirá futuro. Se o fugere urbem do século 18 expressava o descontentamento dos humanos com a modernidade e sua vontade de se reconectar com a natureza, o cottagecore e seus afiliados representam a fuga virtual para um mundo que pode deixar de existir em breve, junto com a nossa possibilidade de vivenciá-lo.



Muita gente encontrou essa saída nos jogos. Praticamente todo mundo que eu conheço, dos 11 aos 40 anos tem uma fazendinha no Stardew Valley ou uma ilha no Animal Crossing. Plantar, colher, regar, esperar o ciclo das plantas, cozinhar, interagir com os vizinhos, participar de atividades na cidade. Tudo que não podemos fazer no mundo real é construído de maneira perfeita nos jogos, com o adendo de não ter que cozinhar para parente bolsominion, responder chefe no whatsapp ou checar as notificações do celular de 5 em 5 minutos.


Não é que a juventude não tenha sonhos e viva só de escapismo. O que eu acho muito bonito nessas estéticas é que elas não são saudosistas do passado: nela cabem pessoas trans e não cabe o machismo e a subserviência feminina. Mas cada dia que passa, parece que não existe natureza para a qual possamos fugir, ou mundo para reconstruir. Cabe então às pessoas construírem na própria estética esse mundo. Por que não um chá no quintal com um lindo vestido? Por que não entupir o meu apartamento de plantas, mesmo que ele fique em uma cidade barulhenta e poluída? Só olhar aquele sonho cada vez mais distante de um mundo sem internet e conectado à natureza e aos trabalhos manuais já é suficiente para algumas pessoas.


E é isso que eu acho que o vestido de morango representa, e o que acho que nos espera na moda nos próximos anos. Se não podemos mudar o mundo ou vivenciá-lo da forma que gostaríamos, vamos criar nosso próprio mundo, nossa própria estética. Sair de pijama ou de princesa Disney na rua, tudo depende da vontade de quem faz. É claro que ainda não é perfeito: mencionei no começo o protesto da Tess Hollyday, e a revolta dela foi com a gordofobia de ter sido considerada uma das mais mal vestidas do Grammy, e logo em seguida o vestido ter viralizado com pessoas magras.


Ainda vai existir um mundo em que a gente possa pensar na moda cotidiana como sendo a representação das nossas vontades? Para mim, uma das coisas mais representativas disso tudo é que a Lirika Matoshi nasceu no Kosovo durante a guerra, e depois sua família migrou para os EUA. Ela pegou tudo de horrível que viu, mastigou e devolveu pro mundo uma beleza etérea, ingênua com a qual todo mundo se permite sonhar mesmo em tempos difíceis.


Quando eu era mais jovem ficava triste em ter que me vestir para a vida que eu tinha, e não para a vida que eu queria ter. Talvez agora a gente não sofra com isso e os sonhos ganhem seu lugar também no nosso jeito de vestir o mundo.


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