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  • Foto do escritorFilipe Chamy

Viagem ao redor do nosso apartamento


Todos estamos despedaçados neste 2020...

Talvez a principal ou única questão com que deparamos na pandemia, em nossa problemática diária, seja a questão do espaço. Como lidar com o súbito aprisionamento de nossa rotina num espaço reduzido, como proteger nossos entes vulneráveis do espaço da doença, como fazer render nosso novo espaço de ação. Perdemos disponibilidades, amigos, amores, programações. Não se trata do espaço de Buzz Lightyear, mas de seu verdadeiro oposto: finito e aquém de tudo que possamos imaginar.

Fica a dica! (Instagram: @nude_yogagirl)

Arrancados de nossos cotidianos, o principal ou único espaço com que deparamos na pandemia é o de nossos lares. E vai nos dando uma raiva daquelas celebridades que clamam aos quatro ventos das redes sociais (Twitter, Facebook, Instagram e Tinder) que fiquemos em casa, que não saiamos. Mentecaptos que não somos, obedecemos, todavia enraivecidos pela hipocrisia involuntária: sentimos que é fácil demais falar quando se é rico e se tem à disposição verdadeiros hectares de terra verde para corridas indoors, exercitar o cachorro ou praticar yoga – até nu, pois nessa imensidão de propriedade que vizinho se avista?


O incômodo vem de nossas impossibilidades financeiras e do caos especulativo imobiliário contemporâneo – uma expressão enorme como essa só poderia ser uma enormidade! A tradução, simples: vivemos em espaços físicos bastante limitados, por vezes apartamentos minúsculos, o que nossas posses permitiram arranjar, e que usávamos apenas para jogar na cama, ao fim do dia, os ossos quebrados por servir no grande moedor de motivações que é a vida adulta no jugo do capitalismo.

Polegares, polegares, onde estão? (AreaH)

Ocorre que veio esse velho novo coronavírus para bagunçar nossas certezas e, como praga divina antiga, nos fazer reestruturar nossos hábitos. Com a total ausência de amigos e a acachapante diminuição, por impossibilidade logística absoluta, da atividade sexual, resta aos nossos corpos conformarem-se com os movimentos dentro da caixa, feito os combalidos pés das chinesinhas de outrora, e passamos a nos relacionar mais íntima e profundamente com nossos espaços domiciliares, consagrando a ele algumas inauditas atenções.

Aconchego bom compensa série ruim. (Youth Village)

Este introito foi apenas para não começar a falar “out of the blue” (uma linda expressão de uma língua que me impressiona cada vez menos, o que ninguém perguntou) do assunto deste texto: séries televisivas! Um dos costumes mais difundidos de sempre, tornados nestes tempos de covid uma necessidade emergencial de saúde mental quase imprescindível. Todos vemos séries, amamos, choramos, sofremos com os términos, como fazíamos com nossos namorados quando havia um mundo real em volta delas.

O melhor crossover que nunca houve. (Baconsale)

Separei aqui três casos muito ilustrativos da relação pessoa-espaço em três de minhas séries favoritas de sempre. O recorte é altamente tendencioso, sendo todos os casos seriados de comédia e escolhidos ao acaso de minha conveniência. Deixei de fora séries emblemáticas da minha vida, como Buffy the vampire slayer e Arquivo X. Acabei lembrando depois que os três seriados de que falarei pertencem, de um jeito estranho que desvelarei aos poucos, ao mesmo “universo”. Principiemos com o mais antigo:

The Dick Van Dyke show (espaço de criação)

Esta gloriosa série criada por Carl Reiner lida com o dia a dia de um roteirista de programa de variedades chamado Rob Petrie (Dick Van Dyke, um sobrevivente da onda de mortes que vitimou quase todo o longevo elenco principal na última década). Boa parte dos episódios se passa em um pequeno escritório, austero e despido de encantos de espécie que seja, no qual Rob e seus parceiros Buddy Sorrell (Morey Amsterdam) e Sally Rogers (Rose Marie) roteirizam o programa de variedades cômico The Alan Brady show.

OK, o escritório não parece mesmo grande coisa...

Sempre me encantou esse humor de repetições infindas, um triunfo da criatividade: com o cenário sempre parecido, de onde extrair humor. Das movimentações dos corpos dos atores? Do posicionamento da câmera, na narrativa televisiva? Dos diálogos sarcásticos e infalíveis, que muitas vezes fazem pensar numa boa comédia de Billy Wilder ou num esquete de Groucho Marx? De tudo, eu diria. Ainda que a repetição de cenários, pelo baixo custo envolvido, bem como pela possibilidade sempre considerada de facilitar gravações e agilizar seu ritmo, seja expediente mais que usado na televisão hoje e sempre, o caso deste show parece diferente, talvez por lidar com criação artística.

Mas pelo menos há espaço para algum exercício.

Há um núcleo familiar, no qual a esposa de Rob é Laura, encantador retrato de espontaneidade e juventude da icônica Mary Tyler Moore. Contudo o cerne da coisa, do trabalho do personagem e da atenção dos roteiros, é mesmo o escritório do roteirista, seu local mais usual, onde pode ser oficialmente encontrado. Talvez seja isso que me toque, ainda mais agora: como criar em espaço tão diminuto, sem graça, sem atrativos, igual todo dia?


É um desafio em que eu e infinitos outros colegas escritores estamos metidos nestes tempos. Nosso relacionamento com a casa, o apartamento pequeno, a quitinete, o quarto na casa compartilhada, deve ser nossa oficina de criatividade quando antes procurávamos ideias e sentidos andando pelas ruas, ou quem sabe observando banhistas na orla da praia, bebendo com amigos no bar. Agora, tornados cativos, todo dia batemos ponto no nosso cubículo processando as tripas para escrever corações, se vivemos disso ou se por alguma razão precisamos escrever

Também dá para arranjar uma jogadinha no intervalo.

Rob Petrie escreve para Alan Brady (interpretado pelo próprio Carl Reiner), que aparece em um episódio intitulado propiciamente The Alan Brady show em

Mad about you (espaço familiar)

O cotidiano de um casal recém-casado, mais o cachorro do homem, mais a irmã da mulher, mais o primo do homem, mais os pais de ambos, mais, por fim, a filha do casal. Paul e Jamie Buchman (Paul Reiser e Helen Hunt) travam seus embates diários com as neuroses do trabalho, da vida conjugada e tudo o que está sempre aí para nós também, com infinitamente menos graça.

Paul, Murray, Jamie Buchman, livros e bagunça.

A quarentena nos fez valorar o espaço que temos em volta, ou pelo menos entender seus limites, e esta série é toda sobre isso: flagras íntimos de duas pessoas em conflito com mais gente aparecendo. A mesa do café da manhã, o leito conjugal, o sofá com a televisão defronte, cada momento possui um ritual e feição. A essência de tudo se passa na casa, onde restamos igualmente para acompanhar as desventuras dos Buchmans.


Fascina a ideia de um ambiente fundamentalmente imutável, no qual tanto drama, amor, humor se instalem. Um episódio particularmente belo se encontra próximo ao fim da série, em sua penúltima temporada, no qual vemos os dois pais de primeira viagem fixados na porta do quarto de seu bebê Mabel, contando o tempo para atender a suas demandas tentando simultaneamente assegurá-la da proteção dos pais e fazê-la sentir que às vezes os pais estarão ali mas não devem ser acionados: é a isso que chamam maturidade, independência, segurança ou qualquer outra coisa que nossos pais, ao contrário dos Buchmans, esqueceram-se de nos passar quando nenéns

"Não há nada no mundo mais viva que uma porta"

Porém que bela metáfora da quarentena que é esse capítulo, em tempo contínuo sem cortes de interrupção: nós diante de uma porta, numa casa, solitários, e em poucos minutos capazes de variar da confiança ao desespero, atravessar o desconforto, ultrapassar resoluções, alcançar a aceitação. Viver, numa casa, confinados, em espaço de metros, a vida esperando para gritar de desespero ao sentir que descuidamos dela – até o momento em que fazemos sentir à vida que estamos ali mas não devemos ser acionados...

Mundos colidindo!

A vida também vive fora do apartamento, e anda como andará Mabel: Paul possuía um apartamento antes de se casar, imóvel ora ocupado por ninguém menos que o Kramer de

Seinfeld (espaço identitário)

Seinfeld em alguns aspectos é um tratado sobre o espaço que delimitamos para nós e o que isso diz sobre nossa identidade.


Se preciso for um exemplo, basta checarmos o apartamento de seu protagonista Jerry Seinfeld: é ali seu refúgio do sufocamento dos pais, habitantes da Flórida; onde recebe os três amigos mais chegados, George Costanza (Jason Alexander), Elaine Benes (Julia Louis-Dreyfus) e Cosmo Kramer (Michael Richards); o local para onde leva as dezenas de namoradas diferentes de cada temporada; onde, presumivelmente, prepara seus roteiros de comédia para apresentar-se por aí, garantindo o sustento.

Independência ou morte: Kramer, Jerry, Elaine e George.

Seus amigos sentem-se à vontade para entrar ali quando querem, tocando ou não o interfone – Kramer, seu vizinho de corredor, praticamente mora com ele e tem livre acesso a todos os bens do apartamento! Numa passagem famosa da última temporada inteiramente supervisionada pelo co-criador do programa, a força cômica Larry David, George, comprometido num compromisso comprometedor, teme que seus “mundos colidam”: o mundo do George oficial, regrado, e o mundo do “George independente”, em sério perigo de extinção.

Poltergeist: a casa vive por si (Seinfeld Current Day)

O apartamento é um refúgio, onde se pode ser quem se quer ser, há liberdade para ser quem se é. Não maculem esse ambiente com pais, noivas ou outros símbolos de uma existência sem independência! Meus amigos podem ter a chave do meu apartamento, podem inclusive receber seus amigos lá, mas a ideia é sempre ter paz, em detrimento de ter... pais! A vida com independência, diz Jerry, faz “a comida ter um gosto melhor. O ar fica mais fresco. Você vai ter mais energia e autoconfiança do que jamais sonhou”. É o poder do espaço próprio, desconsideradas suas dimensões, na recolocação do indivíduo no seu pequeno ponto no mundo.


Certo, é só um apartamento... Mas nele podemos existir, criar, trabalhar, nos sentir, mesmo tristemente encarcerados, livres. Para a poeirinha de estrela que somos, já parece de ótimo tamanho.


P.S.: Os direitos das imagens pertencem a seus detentores.

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