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  • Foto do escritormelody erlea

feng shui distópico com marie kondo


[fotos da exposição "the first law of kipple", de dan tobin smith - ele pediu pra que pessoas dessem seus objetos sem uso acumulados e os transformou nessa instalação]


se tem uma coisa que eu aprendi com minha mãe desde muito cedo foi a organizar e cuidar das coisas. coisas dessas do tipo material, coisas que a gente tem em casa, COISAS. roupa, livro, brinquedo - na minha casa tudo sempre teve seu lugar e sempre foi responsabilidade de todos cuidar para que elas estivessem guardadas e em bom estado depois de serem usadas.


o que não quer dizer que fui educada num sistema doméstico japonês. somos brasileiros e nossa casa tinha aquela bagunça não apenas brasileira mas universal, acho, de casa em que gente vive. vida causa bagunça, e é claro que tinha brinquedo fora do lugar, sapato na sala, toalha molhada em cima da cama e louça acumulada. mas não porque nós não soubéssemos como fazer essa manutenção e limpeza, mas simplesmente porque às vezes a vida deixa a gente mergulhado demais nas obrigações burocráticas de emprego/escola/faculdade/filhos e até mesmo vida social, e as tarefas domésticas acabam ficando em segundo plano.


***

muito antes da marie kondo e dos acumuladores do discovery, eu aprendi a palavra kipple, no livro do androids dream of electric sheep?, do phillip k. dick, uma ficção científica de 1968 que se passa num futuro longínquo e pós-apocalíptico. um dos personagens, john, vivendo num planeta terra abandonado onde só sobraram os tão fodidos mas tão fodidos que não valia a pena mandar pra fora do planeta, explica que kipple é o nome que se dá a essas coisas que se acumulam com o tempo em locais sem manutenção ou limpeza: coisas que chegavam por correio, quinquilharias, brinquedos quebrados, objetos sem utilidade. john complementa dizendo que é preciso ficar sempre atento à presença de kipple - porque onde há kipple, tudo que é não-kipple, ou seja, tudo que é útil, agradável, apropriado pro espaço, vai embora. o que sobra é um lugar cheio de bugigangas e lixo que causam uma sensação ruim.


lá em 68 já tinha escritor de fantasia imaginando um futuro da humanidade em que a gente produziu e consumiu tanto cacareco que eles causam, literalmente, mal-estar. deixam de ser apenas objetos e passam a ser um estado de espírito, que se multiplica e contagia o ambiente e as pessoas.


o cara nem é japonês e nem é da onda minimalista e sustentável e já tava falando em boa energia e má energia que provém de acúmulo de coisas. há uma referência, ainda que sutil, àquela ideia espiritual, mais comum no oriente do que no ocidente, de que acúmulo material causa desequilíbrio; e no livro, john, um homem miserável abandonado num planeta desprezado, consegue atingir certo equilíbrio em sua vida e rotina porque tem o cuidado de lidar com o kipple que se acumula em seu apartamento, o mantendo sempre organizado e limpo.


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o boom dos livros da marie kondo aqui no brasil coincidiu, um pouco, com meu início no minimalismo e o começo desse blog. não li os livros, porque os resumos e spoilers estavam por toda parte - organizar a casa por seções, desapegar do que não "te traz alegria", ter um lugar para cada coisa, etc. tudo isso me parecia tão óbvio: durante toda minha infância e adolescência pelo menos duas vezes por ano tirávamos tudo dos armários e decidíamos o que ficava e o que ia. também aproveitávamos pra trocar o lugar de algumas coisas; no inverno as roupas de calor iam pra armários no alto e as de frio desciam para onde alcançávamos, no verão vice-versa.


não existia não saber onde estão as coisas, não existia não saber dobrar e guardar sua própria camiseta, não existia não fazer a cama. todo ano a gente revia nossa relação com roupas e brinquedos e desapegava de tudo que não fazia mais sentido para nós - o tal do se desfazer das coisas que não te trazem alegria? tirando toda a maquiagem chimbalauê good vibes, é isso: mandar embora o que a gente não usa, não gosta, o que a gente guarda porque acha que deve, o que tá ocupando espaço desnecessário.


por isso quando vi a nova série dela no netflix, ordem na casa com marie kondo - do qual assisti só dois episódios porque, né, quem viu um viu todos - o que mais me chocou foi esse bando de adultos - ADULTOS, do tipo que compra casa e carro, tem filho, paga hipoteca, assina holerite - que não sabe dobrar uma mísera camiseta. gente que casou engravidou pariu mas não consegue ter uma gaveta de talheres e uma de outros utensílios na cozinha. precisa vir uma japonesinha sorridente, pegar na mãozinha e dizer "olha, esse espaço aqui chama gaveta e serve pra você organizar essas merda tudo que você comprou"


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sobre a série e as filosofias de marie kondo, a nina lemos escreveu que tentou aplicá-las em sua vida, mas viver é um monte de roupa espalhada no chão. eu concordo, nada mais natural que a desordem da vida. o problema é quando a gente desiste por completo de tentar organizar e categorizar nossas coisas e nossas vidas. (claro que isso pode provir de problemas e instabilidades internos que precisam ser endereçados e tratados antes de focar em arrumar a casa, né? a primeira casa é nossa mente e ela tem que estar em ordem pra que possamos colocar o externo em ordem também). é um problema maior ainda chegar na idade adulta e sequer saber como começar a organizar um armário de roupa.


concordo com nina quando ela diz que a fissura por esse método de organização regrado de marie tem um quê de mania por controle, mas não consigo tirar da cabeça a ideia de que o que marie kondo diz é, na verdade, muito simples: limpa sua sujeira, mano. organiza a porra das suas coisas. prestenção no que você tem em casa e dá uma geral pra se livrar de uns cacarecos vezenquando.


se tem aquela roupagem auto-ajuda-gratiluz-tome-o-controle-e-seja-mais-feliz pra, né, vender, por baixo disso tem uns conceitos bem importantes e básicos pra ser um adulto. mais do que objetos que nos fazem sentir alegria, a série é sobre entender que o excesso, a bagunça, o acúmulo fazem a gente se sentir mal e atrapalham nossas relações.


a série é sobre separar o kipple das coisas que você quer manter por perto, e aprender a cuidar dessas coisas.


(e só pra terminar quebrando um pouco a ternura da minha conclusão: a série também é sobre machismo, né? thais farage comentou aqui, mas endorso: bando de hómi que não sabe nem onde fica um garfo, nem sua própria cueca, nem toalha limpa, nem nada. desgosto é a palavra. esse texto da vice trata disso e é bem legal. em inglês, mas traz dados interessantes sobre carga de trabalho doméstico para homens e mulheres, estafa mental que provém dessa responsabilidade, além de apontar na série características interessantes nas quais eu não tinha prestado atenção - não apenas a diferença entre a mulher e o homem dentro da casa, mas o fato de que marie sempre deixa a mulher responsável por arrumar a cozinha e o homem por arrumar a garagem ou como alguns dos caras demonstram desprezo por objetos que suas esposas querem guardar por valor sentimental.)


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