top of page
  • Foto do escritormelody erlea

um exercício em suspensão da descrença: sex and the city é bizarro e maravilhoso


sex and the city é a série que eu nunca vi que mais gente me disse que é a minha cara. deve ser o cabelo doido da carrie (versão linda e hollywoodiana enquanto o meu é versão frizz, tempo seco e falta de grana e/ou paciência). eu assisti episódios aleatórios e fora de ordem no multishow mas a falta de rotina pra seguir a narrativa me impediu de curtir. quando fiquei adulta passei a apreciar as citações, os memes e a importância pro lado pop da moda, mas ainda não tinha parado pra assistir do começo ao fim de verdade.


as impressões que eu tinha eram: moda caricata e exagerada, mulheres estereotipadas (a romântica, a do sexo, a da carreira e a fashion victim) e obcecadas por homens, e uma vida de ostentação completamente alienada e fora da realidade.


algumas dessas impressões se confirmaram, mas, porra, a série é boa. não vou entrar no mérito dos anacronismos e dos retratos datados, antiquados e muitas vezes preconceituosos de assuntos tão queridos a nós, como sexualidade, identidade de gênero, quebrar padrões e papéis de gênero, representatividade e diversidade. a série é tão heteronormativa que até os gays são heteronormativos. tem muita coisa que é foda de engolir, especialmente vindo da carrie, que é supostamente a mais sexualmente liberada e inovadora. mas é o que é, os anos 90 foram o que foram e não adianta eu querer discursos de 2019 numa série de 1998.


algo que, pra mim, ficou muito claro é que elas não são obcecadas por homem - a proposta da série é mostrar como essas quatro amigas ricas da cidade pensam seus corpos, seus gostos e suas aventuras sexuais. com certeza se fosse uma série nova ia ter uma pegada mais queer, mas lá nos anos 90 quatro mulheres completamente hétero era o que se esperava ver na tv. a questão é: o recorte da série é o sexo. o recorte das conversas e das vidas dessas mulheres que a narrativa propõe é o viés do sexo, e tudo bem. de maneira alguma significa que sexo e homens são tudo que essas mulheres vivem - cada uma delas, inclusive, é extremamente bem-sucedida em suas carreiras, todas elas são completamente independentes e donas de si... um power quartet de mulheres poderosas e influentes de uma cidade poderosa e influente. e, olha que incrível, a gente tem o privilégio de saber o que acontece atrás das portas, na vida sexual delas. a gente é apresentada a fantasias, fetiches, preconceitos, vontade, experiências, lados bons e lados ruins das relações humanas que se estabelecem através do sexo.


(tudo bem, só do sexo heterossexual, mas vamos lembrar que 1998)


o que me deixa bem embasbacada é a obsessão não por homem, mas por casamento. nenhuma delas consegue curtir uns encontros, umas beijocas e umas trepadinhas de boa por alguns meses, elas ficam desde o começo de cada relacionamento com essa pressão gigante e invisível de saber se esse é o cara perfeito. menos a samantha, que tá em busca do pinto perfeito, apenas.


a charlotte vende arte, sabe, e não do tipo sou-de-humanas. ela vende quadro por centenas de milhares de dólares. porque ela acha que precisa de casamento pra se validar? até a miranda, que é pra ser a super advogada, foco em carreira, independente e opinionada, até ela olha pros caras como possíveis parceiros de vida inteira pra poder descartá-los ou decidir mantê-los. por um lado é interessante, é quase um approach masculino ao jogo todo de ir a encontros e namorar: miranda mede prós e contras dos caras, os coloca no balde "pra trepar" ou "pra casar", tem uma frieza ali admirável (claro que mascarando toda uma sensibilidade e vulnerabilidade que ela prefere esconder).


mas a carrie..... dá pra entender todo o frisson que essa mulher causou no mundo da tv e da moda. a carrie é todo um estudo a parte. é uma personagem muito louca de analisar, não sei se porque completamente contraditória e inverosímel ou se porque absolutamente esférica e humana. universitários, me ajudem.


eu sabia da coisa toda da moda e das roupas e dos sapatos caríssimos de grife, mas o começo é bem diferente. sim, ela é viciada em sapatos, mas ela complementa os sapatos, nas primeiras temporadas, com roupas de brechó, coisas que ela já tem no armário, garimpos e criatividade. os visus dela da primeira temporada são realmente um show, tem muito hi-lo e um estilo lindo de olhar enquanto ele se constrói: sim, tem os sapatos inacessíveis e absurdos, mas tem os vestidinhos de alcinha dos anos 90, tem meia colorida de colocar todos os dedos, tem improviso, tem moletom.... é bem fácil de se identificar mesmo. a coisa vai evoluindo e se distanciando da realidade da maioria das escritoras de coluna pra revista freelancers, e é exatamente aí que está minha próxima grande interrogação.


a carrie tem como trabalho e fonte de renda escrever uma vez por semana pra uma revista em nova york. uma vez por semana. uma coluna pra uma revista. e nem é lá ny times, the new yorkers ou sei lá qual outra revista foda tem lá. é uma revista grande o suficiente pra bancar propaganda no ônibus, mas não gigante.


quanto eles pagam por coluna? sem querer ser indiscreta nem nada, mas a carrie não faz mercado nem cozinha, ela só come fora em restaurantes caríssimos do upper east side ou pede comida em casa. nenhuma dessas duas opções me parece exatamente barata, então eu questiono: o que ela ganha semanalmente por suas colunas banca isso? e as baladas rycas e exclusivas que só rock star ou cara do wall street frequenta? e os brunches chiques? os táxis? e, senhor jesusinho, a conta de telefone? e o aluguel daquele apê super massa numa região ótima com prédios de mais de 100 anos? e ela paga alguém pra limpar (porque acho bem duvidável que ela pare pra faxinar a própria casa)?


porque, tipo, as roupas, pelo menos agora no início, não são caras. carrie a própria diz que compra vestidos de 7 reais em brechó pra usar com os sapatos de 300 dólares - isso mostra uma certa consciência de escolha, do tipo, vou torrar minha grana em sapato mas pelo menos a roupa custou 5 mangos. mas isso é só ilusão, porque não existe roupa de brechó que compense os gastos dessa mulher.


o que eu acho mais bizarro, mais do que todo mundo ser hétero e branco e rico e fabuloso e bem sucedido, é como essa questão da relação da carrie com seu dinheiro é tratada com pouco caso. num dos primeiros episódios ela tenta comprar um par de sapatos e o vendedor não apenas diz que o cartão foi recusado, ele destrói o cartão na frente dela pra mostrar quão absurdamente estourado o limite já tava. ela sai da loja, marca uma balada cara com uma amiga fabulosa e estrangeira, e não se fala mais nisso.


ela simplesmente não se questiona sobre: 1. seus hábitos de consumo; 2. como ela vai conseguir pagar a dívida do cartão de crédito; 3. o dinheiro que ela gasta nas noites subsequentes em drinks caros, baladas esnobes e jantares à dois. isso significa que nós, expectadores, não somos levados a questionar esse comportamento - cortaram o cartão dela, foi um alívio cômico, segue a vida. não é a toa que a gente cai tão fácil na normalidade do se endividar. acho uma loucura, mesmo.


outra loucura é como essa mulher se porta em relacionamentos. ela é incrível e cool quando solteira, mas não consegue perceber sua própria paranóia e comportamento obsessivo quando tá namorando. ela stalkeia a mãe do mr. big na igreja, gente. ela vasculha a casa inteira de um cara com quem ela saiu uma vez até achar uma caixa trancada e tá prestes a destruir a tranca pra ver o que tem dentro quando ele aparece. ela aparece no meio da madrugada na casa do cara, ela marca e desmarca rolê só pelo drama, ela não respeita privacidade e espaço e escolhas pessoais, ela precisa se sentir mais importante do que tudo na vida do cara, ela dá piti em público, nossa, me dá canseira só de escrever tudo isso. isso sem contar o infame momento que ainda vai acontecer (porque eu só tô no começo da terceira temporada) em que ela para de fumar pra agradar o aiden.


no fim, acho que é isso: uma mulher foda que tá sujeita às pressões da sociedade como qualquer uma de nós, e uma delas é ser boa o suficiente pra segurar um homem. se pra isso precisa parar de fumar, mais ou menos, vamo tentar. mas sinto que falta bastante auto-reflexão, auto-crítica e esforço pra mudar, pra compreender seus próprios comportamentos tóxicos e tentar não repeti-los, não ficar tão sujeita a agradar e acabar agindo contra sua própria natureza.


acho que tanto a carrie quanto suas amigas estão tão deslumbradas nessas vidas cheias de lugares incríveis e caros pra ir cheio de gente rica e bonita, tão alienadas num estilo de vida que é muito mais sobre ostentar do que sobre ser, que criam estratégias de comportamento pra poder sobreviver nesse mundo.


e alienadas é mesmo a palavra. na terceira temporada carrie começa a sair com um político. no começo ela não quer porque tem aversão a políticos (quem não) mas esse no caso é gato, charmoso, bem humorado e de bom gosto, então carrie deixa ele se aproximar. pra ser bem honesta o cara é tipo um obama branco: boa pinta e descolado. isso significa que carrie foi quase uma michelle branca?


pelo cuidado estético podia até ser, mas defintivamente não pela consciência política: numa das primeiras conversas dos dois descobrimos que carrie nunca votou em nova york. sabe-se lá a quanto tempo ela mora em nova york, mas parece não ser pouco, e ela nunca se deu o trabalho de votar.


nos estados unidos não é obrigatório então direito dela não votar, mas não é incrível pra nós em 2019, uma época tão socialmente conturbada, que alguém se dê o direito de não ir demonstrar suas escolhas através do voto? a carrie não pensa nos amigos gays dela e em como política os afeta? aí eu lembro que nem os gays da série se importam com como política os afeta.


isso é porque até os gays, assim como as quatro protagonistas, são brancos, ricos e com a vida praticamente resolvida. não há acontecimento social que possa afetar sua segurança, até porque eles nunca saem do upper east side onde todos os conhecem e aceitam sua homossexualidade, que vem anexada a contatos, drinks e dinheiro.


mas eu acho louco como carrie segue na alienação política mesmo depois de passar algum tempo com o cara, o acompanhando em suas campanhas e tudo. ela não ouve nada que ele fala quando tá fazendo campanha? ela se deu ao trabalho de pelo menos ler o plano de governo do cara? ela sabe quais são os motes da campanha, no que ele acredita? tipo, zero interesse completo, e me surpreende que o político gostosão mesmo assim goste dela, a ache incrível. como dá pra achar incrível alguém que tem absolutamente nenhum interesse no que você faz?


quando, depois de já estarem juntos a algum tempo, ele pergunta mais uma vez se carrie vai votar nele, ela responde "talvez. minha vizinha se recusa a recolher o cocô do poodle dela, vamos ver se você me ajuda com isso". alguma semanas acompanhando um político em campanha e a maior preocupação na cidade INTEIRA de nova york que você conseguiu achar é o poodle da vizinha?


é claro que pisar em bosta é, risos, uma bosta, mas ela não consegue por um momentinho sair do mundo deslumbrado dela e ter empatia por todas as pessoas que não vivem na área mais rica, limpa, arborizada e cheirosa de uma cidade gigantesca cheia de problemas? é tanto narcisismo, é uma bolha tão grossa que não dá pra escapar nem um pouquinho?


e as amigas seguem o mesmo padrão: charlotte aproveita a situação pra caçar marido, samantha vota em quem for mais gato e miranda, senhor jesus, deve estar fazendo cinthia nixon se arrepender de algumas de suas escolhas - não de ter interpretado miranda, claro que não, mas de não ter exigido que ela fosse um pouquinho mais politicamente consciente. a mulher concorreu ao governo de nova york ano passado, pelo meu bom senhor, ela sabe o perigo de retratar apenas mulheres alienadas e privilegiadas na grande mídia.


mas, olha, vou dizer. o que me pega mesmo, o que eu acho o mais absurdo desse retrato de uma mulher solteira de 30 e poucos anos em ny, é que a carrie não tem um espelho de corpo todo em casa. a mulher se veste e nunca se olha no espelho antes de sair.


ah e sem contar que:


se arrumando pro primeiro encontro, sem sutiã

indo encontrar as amigas, sem sutiã

em casa, de sutiã.

?????????

que mulher sã faria uma coisa dessas? se você já conseguiu se livrar da opressão do sutiã em público, porque voltar pra ela na intimidade? que mulher usa sutiã em casa plmdds, todo mundo sabe que home is where the braw comes off.



1 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page