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betty - uma série sobre amizade e skate



o skate, como movimento cultural underground que desafia o status quo, é um treco interessante demais. é esporte, é meio de transporte, pode significar independência, mobilidade, transgressão. estéticamente, então, é uma cultura riquíssima em questão de roupa, expressão visual, produtos-fetiche, individualidade...


pena que é tudo quase sempre sobre caras.


deve ser por isso que eu me encantei com a série betty, disponível na hbo, que estreou em maio desse ano e eu maratonei essa semana. a série segue a história de um grupo de amigas que encontram no skate uma saída pra problemas pessoais e familiares, uma conexão uma com as outras e um jeito de combater, mesmo que de maneira micro, estereótipos sociais fincados no machismo.


porque, vamos combinar, pruma coisa transgressora como skate, os ambientes podem ser assustadoramente apegados a dinâmicas sexistas de bullying e intimidação - uma pista de skate pode ser um lugar hostil, se você é uma mulher.



dirigida por crystal moselle, a série de 6 episódios (e renovada para uma segunda temporada) é filhote de um filme de mesma temática que a diretora lançou em 2018, skate kitchen, protagonizado por jovens skatistas talentosas que viraram, também, atrizes. o mesmo elenco e o mesmo roteiro, dadas pequenas mudanças aqui e ali, estão presentes na série e no filme, e não apenas as atrizes são, realmente, skatistas, muitas das histórias retratadas nos episódios são inspiradas em situações reais vividas pelas meninas.


se skate kitchen recebeu esse nome pra ironizar uma exclamação que basicamente toda skatista já ouviu na vida ao aparecer numa pista de skate (go back to the kitchen! ou volta pra cozinha em bom e velho patriarcal português, o que nos lembra que não precisa ser skatista pra ouvir essa merda, não tem uma mina nesse país de meudeus que já não escutou essa clássica frase, seja em tom de piada seja em tom imperativo), o título betty também reivindica uma gíria machista da língua inglesa e ressignifica seu uso.


betty era o nome dado às meninas que rodeavam surfistas e skatistas nos anos 80 e 90 - tipo uma versão street da groupie, saca? o mais legal é que é uma gíria antiguíssima, cujo sentido vai mudando ao longo dos séculos mas sempre indica essa ideia de pessoa submissa, que tem interesses sexuais não-tradicionais (leia-se: qualquer tipo de sexo que não seja o heterossexual pós-marital) e é associada a um tipo de feminilidade frágil e desgostosa, do tipo com a qual pessoas sérias não querem ser associadas.


do século XVII até pouco mais da metade do século XX "betty" era um termo usado pra se referir a homens afemiados, gays, que auxiliavam com tarefas domésticas. a partir dos anos 1970, por causa da personagem betty dos flintstones (a esposa do barney, lembram?), betty passa a ser usado pra falar de mulheres bonitas, dessas que são boas esposas, mas seguem sendo gatas. tipo um jeito antiquado de dizer milf, me parece? lembra de uma cena de patricinhas de beverly hills em que a cher usa betty pra falar da mãe dela? "wasn't my mom a betty?"



a ideia para o filme skate kitchen e, em seguida, a série betty, surgiu quando moselle conheceu um grupo de garotas que publicava seus vídeos fazendo manobras de skate no youtube. a diretora não planejava fazer um filme sobre o universo do skate, mas se encantou pelas histórias dessas meninas e acabou suprindo um vácuo que a gente nem sabia que existia (ou sabia e só não tinha falado em voz alta): o de histórias sobre mulheres skatistas, nesse mundo tão ligado ao universo masculino.


antes de filme e série o encontro de crystal moselle com kabrina adams, nina moran e rachlle vinburg virou um curta pra uma campanha da miu miu de 2016:



a narrativa do curta já é um ensaio da história que se desenrola no filme e na série, em que camille conhece um grupo de meninas skatistas com quem desenvolve uma conexão e amizade que inexistem com o sexo masculino.


a maneira episódica em que a história é distribuida na série é uma delícia, e o ritmo da narrativa assim como a instabilidade das câmeras, naquela esquema meio documental-ficional, me lembrou bastante a estética de kids e outros filmes do tipo que retratavam culturas underground ou marginalizadas de jovens periféricos. só que em betty não tem a aids nem a decadência, e pode-se argumentar que não é exatamente um retrato de periferia: embora haja representatividade e diversidade no elenco, e o roteiro proponha questionamentos raciais, sexuais e de gênero, me parece que o núcleo central de amigas passeia entre classe média e classe alta, em existências relativamente privilegiadas em que o grande conflito é que o interesse por skate desafia o que suas famílias um tanto quanto tradicionais esperam delas.



isso se dá em menor ou maior escala: honeybear, interpretada por kabrina moonbear adams, a mais ousada visualmente - com um estilo meio uniforme que se compõe em shors, adesivos nos seios escondendo os mamilos, uma camisa aberta mostrando o torso nu e pesadas correntes e cadeados no pescoço - vem de uma família de classe média, de pai militar, extremamente tradicional e conservadora. ela mantém essa aparência tradicional dentro de casa, e fora de casa opta por seu visual forte, colorido e alternativo, que ao mesmo tempo sinaliza sua indivualidade e a afasta das amarras tradicionais de seu lar.



já indigo (ajani russel), a novata em skate que rapidamente cria um elo com o resto das meninas, aparenta ser independente e vivida, com sua sobrancelha descolorida, suas tranças grossas, seu estilo meio reminiscente dos anos 90, uma coisa meio tlc com calças cargo e tops justos, e seu trampo vendendo maconha. na verdade ela é filha de mãe milionária, ganha mesada e mora no soho, um bairro rico e hype de nova york, do tipo onde artistas de sucesso vivem.



camille, interpretada por rachelle vinberg, é a protagonista no curta da miu miu e no longa metragem skate kitchen. na série ela divide o protagonismo com as outras personagens, mas sua história segue similar: camille é a única mulher num grupo de amigos skatistas e parece ter se esforçado bastante pra garantir sua posição de respeito naquele grupo, em que ela conseguiu, aparentemente, ser vista como mais um dos caras (ao invés de ser vista como mulher). ela resiste se aproximar das garotas, inicialmente, com medo de cair, na vista do resto do grupo, pro degrau das "meninas", mas acaba percebendo que há certas parcerias e compreensões que ela só consegue com outras mulheres.


nina moram interpreta kirt, minha personagem preferida: ela é hilária, completamente sem filtro mas de um jeito ingênuo e verdadeiramente empático de quem tá fazendo o melhor que pode. ela me lembra ilana glazer, de broad city, pelo jeito totalmente espontâneo de se expressar oralmente e pelo estilo meio pateta de se vestir (embora a ilana com seus croppeds, decotes e shortinhos me pareça bastante uma versão não skatista da honeybear também, essa sensualidade feminista de quem tá tomando conta do seu próprio corpo do jeito que bem entende, sabe?).



janay (dede lovelace) é a cola entre todas as meninas, e além de skatista ela é aspirante a youtuber, num canal humorístico que tem com seu melhor amigo e ex namorado - até descobrir que ele está sendo acusado de assédio por uma menina com quem ficou, e percebe que ela mesma viveu algo similar, que até então não havia enxergado como assédio. ela arrasa no estilo street clássico, com calça cargo, tops de esporte e camisa aberta.



eu gostei demais das maneiras que camille e kirt se vestem (que devem ser bem próximas de como elas se vestem na vida real), fugindo da feminilidade padrão de roupas que mostram o corpo e se encontrando em modelagens e caimentos mais masculinos. elas são o total oposto das outras garotas, que mostram o corpo e fazem uma brincadeira de mistura de peças largas com peças justas e pele à mostra.


talvez seja porque eu sou branca e esteja acostumada a me identificar com gente como eu, mas amei a ideia dessas duas minas que são interessantes, bonitas, intrigantes e conseguem ser tudo isso sem performar sua feminilidade de maneira óbvia e tradicional - talvez porque eu, como mulher branca, ainda me apegue a muitas dessas ferramentas do vestir feminino pra me achar gata e interessante.



não sei se ainda tô preparada pra desapegar totalmente dessa sensualidade do feminino, mas eu defnitivamente agora sinto que preciso saber andar de skate pra ser gata e interessante. será que tô velha demais pra começar?


andar de skate, após assistir betty, me parece não apenas um tipo de empoderamento e independência, mas também o jeito mais real de fazer novas amigas. a série é menos sobre skate e mais sobre amizades e explorar as doideras das ruas de nova york, e como toda fábula de amizade feminina na era do empoderamento e das redes sociais, tem uma visão romântica e idealizada desse grupo de amigas que se abre sem restrições a uma nova presença - e justamente a camille, a que precisa aprender sobre a magia da amizade feminina.



é romântico, mas é novo e fresco: sem a aparente perfidez que permeia as amizades femininas no cinema (vide patricinhas de beverly hills, meninas malvadas etc) e que costuma ser a fonte do humor desse tipo de comédia, toda a vibe da série me lembra bastante broad city, com um humor não tradicional e bem distante do consideraríamos "humor feminino" (seja lá o que for isso).


a série é menos sobre skate e mais sobre amizades e explorar as doideras das ruas de nova york. no fim das contas, o vácuo que existe no audiovisual não era só sobre histórias de mulheres skatistas, mas, sim, de amizades femininas reais, engraçadas, com companheirismo, entendimento, pisadas na bola e bastante palavrão.



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