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aqui, querida: o genial disco passivo-agressivo de marvin gaye


tem uma frase do lester bangs, um dos maiores críticos de música pop da história, que eu honestamente não sei dizer se é uma frase que ele realmente disse ou se é uma romantização das coisas que ele acreditava. a frase tá no filme quase famosos, que é meio ficção e meio baseado em fatos reais, e a cena é a seguinte: lester bangs está numa estação de rádio dando uma entrevista, falando mal do jim morrison e reverenciando iggy pop, quando de repente vira pra radialista e diz:


música, música de verdade - não só róquenrou - escolhe você.

eu não consigo deixar de concordar - toda a música que eu ouvi e pela qual eu me apaixonei: eu fui escolhida. acho curioso que vez após vez após vez as músicas que me escolhem seguem sendo as de heartache, as de tristeza e solidão, as de isolamento e contemplação. não é a toa que, desde sempre, gente como eu se identifica de primeira com rob gordon.

tem tanta vida sendo vivida no grande leque da música pop triste. tem muito coração partido, amor não-correspondido, traição e arrependimento. tem abuso (sexual, de drogas, psicológico, todo tipo), tem dor, tem a dor constante de ser um peão numa indústria que é podre, mas que produz coisas tão maravilhosas. uma letra de amor contem em si muito mais do que apenas romance. uma letra de amor esconde as mais loucas histórias, pressões de mercado, problemas com grana, brigas com parceiros de trabalho, breakdowns mentais, procedimentos médicos, conflitos familiares e todo tipo de escuridão que pode haver dentro do cérebro humano.


mas poucos discos - de amor e de heartbreak - explicitam tanto os mecanismos tortuosos que levam à criação de uma obra de arte quanto here, my dear, de 1978 - disco que marvin gaye compôs após seu divórcio com sua primeira esposa, anna gordy.


anna gordy era a irmã mais velha de berry gordon - simplesmente o dono da gravadora motown. anna tinha seu próprio selo musical, a anna records, onde marvin gaye começou sua carreira como parte da banda do estúdio. quando a anna records fechou, marvin gaye e anna gordy foram realocados pra motown. anna gordy é a inspiração por trás da canção pride and joy, de 1963 e escreveu com marvin algum dos hits no disco what's going on, de 1971. marvin e anna se conheceram em 1959 - quando ele tinha 20 anos e ela 37 - se casaram em 63 e se divorciaram em 1977. marvin gaye casou com sua chege 17 anos mais velha - e parecia até que tava tudo bem, até não estar mais.

anna gordy e seu filho marvin gaye III

quando anna e marvin iniciaram os dolorosos e longos processos de divórcio em 1975, o cantor já estava já dois anos tendo um caso com janis hunter, que ele conheceu nas gravações do disco let's get it on, e com quem já tinha dois filhos. quando se conheceram, janis tinha 17 anos e gaye, 34. a adolescente era filha de uma amiga do empresário de marvin, e tinha sido convidada pra ir assistir o cantor no estúdio. janis depois contou sua própria história ao lado de gaye no livro after the dance: my life with marvin gaye, em que fala sobre as drogas, as manipulações sexuais e o machismo de marvin.

marvin gaye e janis hunter

os gastos com a amante, os dois filhos que tinha com ela e o filho adotivo que tinha com anna, sua dependência química - dizem que ele gastava cerca de 500 dólares por dia em cocaína -, o estilo de vida galmouroso e ostensivo e os inúmeros casos extra-conjugais, adicionados aos gastos do divórcio, o quebraram, e após dois anos de brigas, manipulações e jogos psicológicos, em 1977 foi acordado que todos os royalties do próximo disco de marvin se destinariam a sua ex-esposa pra cobrir gastos de pensão e garantir que ela mantivesse o estilo de vida com o qual estava acostumada.


e é aí que o negócio fica (ainda mais) interessante.


marvin iniciou os processos de composição de músicas pro seu próximo disco decidido a fazer algo sem muito esforço, nem bom nem ruim, já que a grana iria toda pra sua ex. mas conforme mergulhava nas músicas e nos motivos que o faziam estar ali, o disco foi se transformando, se moldando, e virou uma obra prima, um registro de uma história de fama, trauma e escândalo, uma declaração de amor, uma carta de adeus e um dos mais maravilhosos discos da motown.

here, my dear é uma narrativa musical de um relacionamento - do relacionamento de anna e marvin. o disco percorre uma cronologia desde o primeiro encontro do casal, a paixão, a vontade de se casar e compartilhar uma vida, passando pelos conflitos do casamento, pela fase em que a paixão da lugar a outro sentimento, mais morno, menos cego, retratando as brigas, a raiva, o ódio, as palavras insensatas no calor da briga...


tudo isso seria natural num disco de amor, mas marvin dedicou o álbum explicitamente à ex: o disco abre com a música-título, em que ouvimos marvin gaye dizer calmamente "acho que preciso dizer que esse disco é dedicado a você. talvez não te faça feliz, mas é o que você quer".


ele também detalhou nas letras do disco cenas de sua vida íntima com anna, como discussões com advogados, chantagens emocionais, o fato de que anna proibiu marvin de ver seu filho, a insinuação de marvin de que anna estaria fazendo tudo aquilo pra estorquir mais dinheiro dele, as acusações em relação à amante do cantor, a falta de empatia e carinho de sua ex. o ápice acontece na música anna's song, ao mesmo tempo um apelo por perdão, um apego a uma lembrança da anna que ele conheceu na juventude e uma homenagem ao grande amor de sua vida.

ao se encaminhar pro fim, o disco adquire um aspecto mais otimista com a canção falling in love again, uma piscadela à janis miller, que em breve se tornaria sua esposa.


here, my dear é considerado, hoje, um dos maiores trabalhos de marvin gaye - ele passeia pelo doo wop, soul, funk, brincadeiras jazzisticas e tem os vocais absurdamente estarrecedores e charmosos de gaye. as histórias sobre sua gravação também são lendárias - ele compunha as letras improvisando enquanto ouvia as melodias das músicas que estava compondo, que ele também improvisava.


o guitarrista do disco gordon banks diz que, embora estivesse envolvido como músico, teve pouca participação no processo: marvin dava instruções precisas do que queria que fosse gravado, criava as letras, e depois refazia a música com a letra pronta e pedia pra que os instrumentos fossem gravados de novo. a canção is that enough foi criada após um dos infames encontros com os advogados de divórcio - marvin saiu da reunião assobiando a melodia, foi pro estúdio e terminou a música e a letra, que é, justamente, sobre os procedimentos amargos da separação.

banks também diz que o disco não é só um adeus a sua ex-esposa: o cantor queria expandir seu alcance para além da motown, então era, além de um relato de término, um adeus à gravadora que o havia acompanhado desde o início da carreira.


o lançamento do disco também é envolto em histórias: nem a gravadora, nem a crítica da época, nem o público super compraram a ideia de um disco de divórcio. o disco destoava da estética do soul e disco da época, vendeu pouco e foi bem mal divulgado, considerado estranho, confuso e inconsistente por críticos de música.

anna gordy se sentiu humilhada e exposta pelo disco e ameaçou processar o músico ainda mais uma vez, mas no fim preferiu deixar a história passar e ser esquecida. o próprio marvin disse que precisaria escutar o disco mais uma vez pra saber se ele invadia a privacidade de sua ex, mas que tudo era válido no amor e na guerra.


a verdade é que nem toda letra do disco é agradável - muito menos se você é a protagonista das anedotas sendo cantadas. o próprio título já me parece um recado passivo-agressivo, uma indireta de facebook, "tó, querida, pra você, aproveita, viu?" mas aquela crudeza na exposição de um relacionamento não teve apelo pop, e o único single do disco foi a funky space reincarnation, um funk de 8 minutos sobre sexo espacial e maconha cultivada em vênus (amo).

here, my dear acabou esquecido por anos e considerado um disco menor de marvin gaye até começar a ser revisitado décadas depois, sob uma nova luz e sob o valor histórico de marvin e desse que seria um de seus últimos discos.


gaye ainda é mais conhecido por hits como let's get it on, que nos apresenta o lado sexual de marvin, e what's going on, que nos aproxima do lado ativista, mas é ouvindo here, my dear que a gente conhece o lado mais pessoal, contraditório e intenso do artista, em todos os seus conflitos internos, arrependimentos e ideias sobre amor, perda, separação e dor.

(e esse recado discreto na contracapa do disco: PAIN AND DIVORCE, pega essa amargura)

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