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  • Foto do escritorAurélio Araújo

I May Destroy You, estupro e a morte do ego

Atenção: este texto contém spoilers de I May Destroy You e, por alguma razão, também de Game of Thrones. Prossiga por sua conta e risco.


O grande problema de representar na tela atos terríveis, como o estupro, é pensar a que serve essa representação. Na ficção, diferentemente da vida real, é possível ter controle sobre o que acontece. Portanto, para que se tenha algo horrível em cena, como um estupro, é preciso que aquilo cumpra alguma função narrativa. A cena está lá apenas pelo choque ou ela vai trazer algo a mais para a história? Como fazer com que essa cena não seja apenas a fetichização de uma violência sexual?


Em 2015, a grande série da TV mundial era Game of Thrones. Na quinta temporada, a personagem Sansa Stark, uma das protagonistas, é estuprada por Ramsay Bolton, um sádico que então era seu marido. A cena foi amplamente criticada por espectadores (em especial por espectadorAs), por uma série de razões.

Sansa Stark e Ramsay Bolton: um casamento que acabaria afastando espectadores de Game of Thrones
Sansa Stark e Ramsay Bolton: um casamento que acabaria afastando espectadores de Game of Thrones

Àquela altura, Sansa, depois de sofrer muito na série, já estava ganhando um pouco mais de controle sobre sua vida, aprendendo a lidar com os ambientes hostis em que se metia. Além disso, o público já havia entendido que Ramsay era um sádico, uma pessoa doentia que gostava de tortura e de causar dor. Mas o pior de tudo talvez tenha sido COMO a produção decidiu retratar o estupro.


Ele foi acompanhado pelas reações de um terceiro personagem forçado a assistir à cena: Theon Greyjoy, irmão de criação de Sansa e alvo favorito das barbaridades de Ramsay. A ideia é que Theon “acordasse” e recobrasse a consciência ao ver sua irmã estuprada. As pessoas se questionaram então: por que fazer isso justamente através de um estupro de uma terceira personagem? Por que tem que ser a violência sexual a cumprir essa função narrativa? E o que aconteceria com a força que Sansa estava criando? Desapareceria por conveniência e voltaria no episódio seguinte? Enfim, a motivação pareceu fraca, como diz esse artigo da Vanity Fair publicado à época. Além disso, o estupro foi inventado pelos roteiristas, já que não existia nos livros que inspiraram a série.

Theon Greyjoy: lágrimas para você entender que estupro não é legal

Há outras abordagens interessantes quando o estupro é basicamente o cerne da trama, como é o caso de The Handmaid’s Tale. Situada num futuro distópico em que as taxas de fertilidade caíram e apenas algumas mulheres podem engravidar, a série mostra os EUA convertidos numa ditadura cristã. As mulheres férteis se tornam aias das famílias da elite, cujos patriarcas têm o direito de escravizá-las sexualmente para gerarem seus filhos.


A premissa é terrível, mas muito inteligente, o que resulta numa grande primeira temporada. Mas o livro de Margaret Atwood que inspira a narrativa não dá conta de encher vários episódios de diversas temporadas. Aí, o peso de preencher as lacunas cabe aos roteiristas da série. E então...

Offred, de The Handmaid's Tale, é estuprada num sexo exclusivamente voltado para a reprodução

...a partir da segunda temporada, começam a aparecer acusações de que a série, na verdade, representaria uma espécie de “torture porn”, um pornô da tortura, já que ela mostra de maneira muitas vezes explícita castigos físicos terríveis, punindo não somente as personagens ficcionais, mas seus espectadores. Por que nós deveríamos, semana após semana, assistir a mulheres sofrendo das piores formas possíveis? A que lugar isso pretende levar a narrativa?


Enfim…


Aí, chegamos a 2020, com a série I May Destroy You, criada e estrelada por Michaela Coel, atriz e roteirista britânica negra de origens ganesas. Aos 32, Coel já é conhecida do público por sua série Chewing Gum, uma comédia de relativo sucesso. E o tema de I May Destroy You é o mais direto possível: o estupro.


Ou melhor, as consequências do estupro. Até aqui, falamos sobre cenas de estupro e como elas podem ser ou banalmente violentas, ou então molas propulsoras de roteiristas preguiçosos.

Michaela Coel em I May Destroy You: uma série sobre o que acontece após a violência sexual

Mas esse não seria o caso de Coel. Até porque a série é um tanto autobiográfica: a própria criadora de I May Destroy You foi abusada sexualmente, no ápice do sucesso de Chewing Gum. Então, quando ela decide fazer uma série sobre o tema, é de certa forma uma expurgação dos seus próprios sentimentos.


A história gira em torno de Arabella, alguém que, como Michaela Coel, tem na escrita sua ferramenta de trabalho. Arabella, no caso, é uma escritora, autora de um livro bem-sucedido comercialmente, e está sendo pressionada por seus agentes e sua editora para entregar um novo trabalho, surfando a onda do seu último livro. Algo como Michaela Coel sendo cobrada para entregar uma nova série, após o sucesso de Chewing Gum. A dificuldade do processo criativo seguirá como um pano de fundo nos demais episódios, sempre presente.


Logo no primeiro episódio, algo estranho acontece. Procrastinadora, Arabella deixa de escrever para sair com seus amigos. A narrativa, que vinha acelerada até aquele momento, de repente se torna lenta. Vemos Arabella se comportar de maneira errática, um pouco irracional, e há um mistério sobre o que está acontecendo com ela. Aos poucos, junto com a protagonista, nós percebemos o que de fato houve naquela noite estranha: ela sofreu um estupro. Parte do reconhecimento disso vem da única imagem que ela tem, uma memória embaçada de um homem com o rosto desfocado fazendo movimentos sexuais, arcando o corpo pra frente e pra trás, sobre ela.

A memória repetida do estupro que Arabella sofre, uma imagem embaçada e distante

Essa imagem, que se repetirá várias vezes ao longo dos episódios, é o que a série tem mais próximo de “cena de estupro”. O que importa em I May Destroy You acaba não sendo exatamente o que aconteceu naquela noite, como Arabella descobrirá mais tarde, ao ver que a polícia não tem provas suficientes para levar o caso à frente. O que importa, na verdade, é o que Arabella irá fazer com isso. Ela foi estuprada. E agora? É possível superar esse trauma? É possível ainda criar? Com quem ela pode contar, tanto para investigar por conta própria o que aconteceu com ela na fatídica noite, bem como para não se tornar prisioneira do seu próprio sofrimento?


Os amigos de Arabella, Kwame e Terry, refletem de outra forma a jornada da protagonista. Por meio deles, a série questiona todos os limites do consentimento sexual. Kwame, usuário do app gay Grindr, é alvo de um ato sexual não consentido. Até nisso a série adentra, mostrando a dificuldade que é para um homem 1) assumir e reconhecer que foi estuprado e 2) buscar ajuda policial. Aliás, Kwame é negro, o que complica ainda mais as coisas. Gênero e também raça são camadas a mais com as quais a série brinca, sem nunca deixar isso tão explícito a ponto de virar um panfleto. A história bem contada vem antes.


Traumatizado depois disso, Kwame tenta experimentar como é sair com uma menina. Transa com ela, mas só revela que é gay depois. A série propõe um questionamento: é ético persuadir alguém a fazer sexo, sem revelar que é só uma experiência com a própria sexualidade?

Terry e Kwame, amigos de Arabella: jornadas que questionam os limites do consentimento

E o que dizer de Terry, cuja maior aventura sexual é um ménage que aparentemente aconteceu por acaso, mas que ela percebe depois ter sido combinado antes entre os dois homens? Onde isso se encaixa na escala de trauma sexual? Certamente está abaixo do que seus amigos passaram, mas também é algo que parece não ser completamente inofensivo à sua autoestima. A própria Arabella acaba passando por um outro tipo de abuso, quando um parceiro sexual faz algo com o qual ela não consente, mas que ela não percebe de imediato.


Todas essas questões vão culminar num espetacular último episódio, em que Arabella finalmente se vê diante do seu abusador, de volta ao bar cujo nome não poderia ser outro que não Ego Death. A morte do ego é um conceito psicológico de Jung que significa a perda da identidade, uma transformação da psique.


Joseph Campbell, o antropólogo norte-americano que escreveu que todas as histórias contadas pela humanidade são iguais, mapeou o que se convencionou chamar de “a jornada do herói”, uma espécie de passo a passo pela qual toda história contada por humanos caminha. (É por isso que a gente vê aqueles memes em que supostamente a história de Harry Potter é copiada de Star Wars, ou que Avatar na verdade é a história da Pocahontas. Todas as histórias são iguais, algumas só são mais iguais que as outras, diz Campbell)

Meme comparando Harry Potter e Star Wars. Campbell diz: EU JÁ SABIA

Na jornada do herói, a morte do ego representa um passo importante: um herói pode ir parar numa aventura por acidente ou contra sua vontade. Mas, para sair dela, em algum momento, ele vai ter que tomar uma decisão grande, e essa decisão deve representar o desapego do seu próprio ego, um sacrifício, um enfrentamento de consequências, uma transformação da qual não há mais volta.


No episódio final de I May Destroy You, Michaela Coel oferece três possibilidades para o final da história de Arabella - na verdade, quatro, na minha opinião, mas podemos debater sobre isso. O primeiro deles é um banho de sangue, a vingança da forma mais explícita possível. O segundo é uma conversa em que parece haver uma conexão entre o trauma da vítima e as motivações do abusador, com a polícia prendendo o homem ao final, quase como um conto de fadas. O terceiro é o mais surreal de todos, com um mundo alternativo em que os papéis de gênero são questionados e há até um banheiro unissex. Nesse final, o estuprador diz a Arabella: “eu não vou embora se você não quiser que eu vá”, ao que ela responde: "vá".


E, no meio de todos esses finais, está o livro que Arabella não consegue finalizar - ou não conseguia, até esse episódio derradeiro. Enquanto ela batalha com as diferentes possibilidades para encerrar sua história, Arabella parece finalmente se livrar do peso que carrega desde o primeiro episódio, daí o propósito de mandar embora o abusador no terceiro final, como se a libertação ocorresse aí.

Arabella diante de seu estuprador: o que acontecerá agora?

O que eu chamo de quarto final é justamente quando retornamos à casa de Arabella e seu amigo pergunta a ela se ela não vai, como toda noite, ir até o bar em que foi estuprada para ver se encontra seu algoz lá. Dessa vez, pela primeira vez, ela responde que não. Isso abre a interpretação de que não é que Arabella vai FISICAMENTE toda noite procurar para ver se encontra seu espectador, mas que ela revisita essa situação a todo momento, todo dia...até que chega o ponto em que, por meio da sua própria criatividade, retrabalhando suas questões por meio da criação artística, ela deixa de fazer isso.


Eis aí a morte do ego de Arabella, quiçá também de sua criadora: I May Destroy You, como o próprio nome já diz, é uma história em que algo pode ou não ser destruído. Pode ser uma reputação, pode ser o psicológico da vítima, mas pode ser também o que se faz com um trauma profundo, retrabalhado e ressignificado por meio da criação artística. Ao não banalizar a violência sexual e, pelo contrário, abrir mais discussões sobre ela, a série se converte na mais importante de 2020.

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