Filipe Chamy
Você morre no fim

O ano de 2020 termina com a última disputa desta espantosa década marcada por duelos persistentes (e irritantes): candidato menos corrupto x candidato mais descarado, coxinha x mortadela, feijão por cima do arroz x fascismo. O ano da pandemia, talvez nosso ano mais traumático desde 1348 (início da peste bubônica) – vá lá, desde 1918 (surgimento da gripe espanhola), ou 2004 (advento do Facebook).

Qual a dualidade que tivemos neste pandemônico conjunto de 365 infelizes diazinhos? As torcidas contrárias entre os que tiraram grandes lições de vida deste ano de faltas e incertezas e os que reconheceram nos últimos meses o horror engarrafado, bebida amarga que bebemos desde quase um ano, alguns com rolha e tudo. Eu estou sempre meiando: ano diabólico, mas nele declarei minha independência espacial e estou em vias de finalizar meu mais importante livro (espalhem a notícia na floresta, o príncipe Orestes está para nascer!).
Porém irmanando a todos chega aquela amazona indubitável, nossa única certeza na vida, que jogou xadrez com Max von Sydow e foi a única pessoa que ousou beijar nossos lábios ultimamente sem cobrir o rosto com máscaras feito os amantes de Magritte: sim, a queridíssima morte.
Se há um spoiler que posso falar sobre a vida de vocês, é o que segue: vocês morrem no fim. Horácio há mais de dois mil anos falou já que a pálida morte alcança aos pobres em seus casebres e aos ricos em seus castelos; o bom romano não falava do novo (já velho) coronavírus, como de resto eu também não, ou não especificamente, não agora.

Esqueçamos um momento o terror imediato, que nos faz temer por nossos entes amados, ficar longe de nossos queridos idosos, rever amigos apenas por telechamadas, e pensemos no mais além. Todos morreremos, é certo; porém não se sabe quando, e isso nos anima a continuar produzindo arte e oficiando labores, ganhando dinheiro, tecendo planos. Todavia já começam a aparecer profecias, ancoradas mais em cálculos científicos que em planetas em disjunção, e nem por isso menos emocionantes: toda a vida terrestre, ou pelo menos, sobretudo e principalmente as vidas humanas, estão fadadas ao desaparecimento.
Vai demorar, pelos nossos contadores, mas vai chegar. Diferentemente de nós, a extinção não se apressa. Não tem boletos para pagar, cartão para bater e nem tem que correr para pegar encomendas na portaria, pois ao que saiba não toma banho algum e portanto jamais é interrompida! Vai seguindo, lenta, inexorável, a única certeza que temos desde a nascença. Muitos nem chegam a viver, ou chamar a isto vida, contudo morrer é nossa meta e fim últimos, em todas as acepções. Daremos as mãos rumo ao negro nada, sem som nem cor. Sem consciência?

Pode ser, e alguns dirão: e daí? Já não estarei mais aqui, dane-se. Nobilíssimo desprendimento das paúras imediatistas, filosofia à qual não me associo, infelizmente. Gostaria de seguir o credo professado por Erland Josephson em Fanny Alexander: “graças a Deus estarei morto em alguns anos e não presenciarei isso”. Eu, como muitos, sou por demais pouco religioso para não me apegar aos sensos materialistas.

Falei de Horácio, morreu o poeta antigo? Morreu nada, pois está sendo citado, lembrado, festejado, com sorte editado, relido. Isso não é morte, é viver postumamente. Não é a isso que me refiro. A carne morre, fazer o quê, todos voltaremos ao pó. O problema é quando nos darmos conta que não haverá sequer mais pó a que retornar. O empregado tirou o pó da mesa? Não, essa é a velha piada malvada sobre o vício em neve do falecido Dieguito Maradona, Dios o tenha.

A questão é mais funda, meus leitores projetados: o universo deixará de existir, ao menos como o conhecemos e estimamos. Há malucos que já andam se preocupando com isso. Observem este trecho escrito há coisa de duas semanas por Hélio Schwartsman, colunista da Folha:

“O Universo tem hoje, arredondando, 10 elevado a 10 anos. Quando passarmos dos 10 elevado a 14, a maioria das estrelas da maioria das galáxias terá se apagado. Aos 10 elevado a 30, buracos negros centrais terão sugado o que restou delas. Aos 1038, já não haverá átomos e, aos 10 elevado a 50, o próprio pensamento como atividade abstrata será impossível. Com 10 elevado a 102, tudo o que restará será uma difusa névoa de partículas vagando pelo espaço”
(SCHWARTSMAN, Hélio. As muitas mortes do universo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12/12/2020, p. A2. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/12/as-muitas-mortes-do-universo.shtml?origin=folha>. Acesso em: 25 dez. 2020).

Sem vaidade asseguro que não sei ler números tão gigantescos, nem me passa pela cogitação apreender valoração assim gigantesca. Mas a conta chega, em algum momento. Isso não nos deveria bastar para tranquilização. Há dezenas, centenas de milhões de anos os dinossauros também liam o Schwartsman e falavam: “alarmista! Ainda há milhões de anos para aproveitarmos a tranquilidade de uma existência sem gelo, fome e meteoro, relaxem aí...”.
Demorou, mas chegou: os terríveis lagartos levaram a breca. Deles sobrou apenas filmes ruins de Steven Spielberg e brinquedos do McLanche. O que nos impede de, feito nossos amigos escamosos, ultrapassar o imediatismo de nossos cotidianos e considerar que, mais para frente, daqui a algumas milhares de eras, nada mais vai sobrar? Orgulho, ignorância, medo?

Horácio vem sobrevivendo há dois mil anos, como Cervantes há quatrocentos. Entretanto, como lembrou meu amigo Davi Ryba, isso preocupa a filósofos ociosos como nós e Woody Allen, que se diz desmotivado pela finitude do universo. Para que nos preocuparmos com prêmios e reconhecimentos, se ao final nem a obra sobrevive? E o velho novaiorquino diz que nem Shakespeare poderá se contentar de ter escrito os mais belos versos da história, ser objeto de estudos múltiplos incessantemente e ver as romarias a seus lugares de andanças e repouso, pois tudo que ele produziu irá junto ser tragado pelo caos decorrente que negará a todos nós.

Pois é isso que me angustia, demais. E me desmotiva igualmente, porque penso que de nada serviu chegarmos aqui, evoluirmos em ciência, tecnologia e saúde, para daqui a um tempo isso ser aniquilado. Adeus, bibliotecas – minimalistas ou alexandrinas! As estátuas de escravistas, basta esperar mais alguns milênios e elas mesmas irão para o fundo dos rios, que irão ao fundo dos mares, que mergulharão, como nós, Shakespeare e Horácio, no fundo do nada.
Também num romance abordei esse pesaroso assunto, quando Érico Lobeiro Paiva, meu protagonista de O resto é o mundo, reflete, no capítulo 80:
O maior medo que tenho, ou meu único legítimo ódio, é a pusilanimidade que se demonstra na notícia do perecimento da humanidade, quando o Sol se apagar. Oras, se a chave das religiões e de boa parte do pensamento filosófico traduz-se em procurar entender de onde viemos e por quais razões, por que reputar menos relevante a destinação, o ponto final a que aportaremos, sendo que, sem a apreensão do passado, nosso futuro é um só – a inexistência?
Temos acesso ao que foi preservado na história do mundo e das artes desde a Antiguidade, cópias, transcrições, arquivos, o repertório de eras depositado nas estantes de bibliotecas, nos dados de computadores, nos periódicos, as nuvens virtuais, cofres, túmulos, cápsulas que queremos salvar da extinção mandando ao espaço. Entretanto, a nós quem nos salva? A imortalidade dos artistas e pensadores, a que ridículo bafejo de pretensão será reduzida quando eu, Cervantes, Dante e Newton nos irmanarmos no ocaso do vácuo, o Sol apagado e nossa obra destruída!

Bate em mim uma apatia desalentadora quando recordo sobretudo a falta de reação vez que comunico aos apáticos esse estarrecedor agouro. Pensam em seus próximos: “meu filho”, “meu neto”, “todos estaremos mortos”. A hipocrisia experienciada como uma profissão de fé, não obstante, lima da compreensão delas a faculdade de entender a morte, o esquecimento total absoluto. Poucos milhões de anos anestesiam as impressionabilidades.
Morrer não é daqui para cinco anos, mas o apagamento de nossos registros, sem volta. Se tranquilamente pensamos na velhice como evento irrealizável, poderão negar aos humanos a clarividência que minha lucidez me nega, de ir vivendo sem se preocupar com o Sol apagando seus rastros?
(CHAMY, Filipe. O resto é o mundo. São Paulo: inédito, 2018).
É para quando ou para já? Vai saber. Mas o que podemos tirar disso? Sossego, por não haver que se fazer? Desespero e desconsolo, pela mesma razão? O covid nos abriu os olhos para o final próximo, mas ele sempre esteve aí, e periga ficar ainda mais chegado. E todo o mundo que temos de noções, o que aprendemos, deixamos escrito, os legados? O Universo vai se engolir, o Sol vai apagar. É daqui a milhões de anos, dinossauros!

Melody Erlea, conversando comigo sobre este assunto, achou maravilhoso tudo ter data de validade, ainda que longínqua. Que tudo acabe, a marca da desimportância de nossos feitos e ações. Sente-se livre Melzinha para fazer o que quiser, sem a pretensão horrorosa de ser lembrada, veneno que certamente corrói ao menos em parte meu coração inseguro. E eu, que lido tremendamente mal com términos, mesmo os distantes bilhões de anos, disse a ela que o pensamento da finitude me tira o gosto de prosseguir.
— Meu objetivo imediato — disse eu — é a paquera gostar de mim, mas também penso a longo prazo... Quantos bilhões de anos ainda temos para ouvir Mozart e Bowie?
Eis que nossa zen-budista blogueirinha me responde, serelepíssima menina verdadeira, Poliana pronta para a nova década:
— Muitos! E o fato de estarmos aqui podendo ouvi-los é o que deixa tudo mais lindo! É uma chance minúscula, mas cá estamos!
Caramba, pensaram os dinossauros, confortáveis em reclamar de sua extinção. Diacho de pensamento bonito...
P.S.: Os direitos das imagens pertencem a seus detentores.